O camponês que virou exorcista: a escolha que mudou tudo

Das lavouras italianas às “trevas” de Cascalho, a história não contada de Padre Luiz Stefanello Antes de enfrentar demônios, ele quase foi apenas um lavrador. Antes de se tornar lenda, ele teve que escolher entre o amor e o chamado de Deus. Depois das séries “O padre que veio da Itália e mudou Cascalho para sempre” e “Os exorcismos de Cascalho”: as histórias que ninguém esqueceu’, o Tá no Arquivo revela o capítulo que faltava: a origem. Como um jovem camponês de Vêneto renunciou ao casamento, cruzou o oceano e se transformou no exorcista mais poderoso do interior paulista? Esta é a história de uma escolha impossível. Uma renúncia total. Um destino extraordinário. Leia esse artigo que ninguém contou até hoje e se surpreenda. Das lavouras à batina O início da trajetória de fé, renúncia e missão do padre que transformou o interior paulista Depois das séries, o Tá no Arquivo continua a reconstruir a história de padre Luiz Stefanello, agora no início de sua caminhada: “Das lavouras à batina”. Nessa fase, descobrimos o jovem camponês que quase se casou e seguiria o destino comum da roça, mas que movido por um chamado profundo renunciou a tudo para entregar-se à vida religiosa. Essa escolha o conduziu a uma jornada que cruzaria oceanos, transformando-o em símbolo de fé e devoção popular no interior paulista. Raízes humildes em Pionca di Vigonza Luiz Stefanello nasceu em Pionca di Vigonza, uma vila agrícola da província de Pádua, na região do Vêneto, norte da Itália uma das áreas mais católicas e agrícolas do país.Filho de Antonio e Angela Stefanello, lavradores, cresceu entre plantações e orações. O som dos sinos da igreja guiava o ritmo da vida: trabalho de dia, missa aos domingos e rezas à noite. O livro “Um Exorcista na Estância” descreve sua infância como simples, mas espiritualmente rica. Desde pequeno, Luiz mostrava uma fé intensa, mesmo sem entender as palavras do missal em latim.Sua mãe, mulher piedosa, foi quem o introduziu nas devoções a Nossa Senhora, rezando com ele diante de um pequeno oratório feito de madeira na cozinha da casa. O sonho de formar uma família Como muitos jovens do campo, Luiz cresceu com o destino praticamente traçado: trabalhar na lavoura e construir sua própria família.Na juventude, conheceu uma moça com quem chegou a se comprometer, planejando o casamento e a continuidade do trabalho familiar.O casal sonhava em cultivar a mesma terra dos pais, criar filhos e viver a vida simples dos agricultores italianos do início do século XX. Mas um acontecimento mudaria seu rumo para sempre. O chamado que transformou tudo Durante uma missão paroquial, Luiz ouviu um padre missionário falar sobre vocação. As palavras tocaram fundo.Segundo o livro, naquela noite ele não conseguiu dormir. Sentia um misto de inquietação e paz como se algo o chamasse para um propósito maior. Dias depois, confidenciou ao pároco local o desejo de ser padre. O sacerdote, surpreso, tentou lembrá-lo das dificuldades: “Estudar teologia exige muito, e os estudos são longos e caros. Você é um homem do campo, Luiz.” Mas a decisão já estava tomada.Luiz rompeu o noivado e decidiu procurar o seminário dos Missionários de São Carlos (Scalabrinianos), fundado por Dom João Batista Scalabrini, bispo de Piacenza, conhecido por seu amor aos migrantes italianos. A difícil aceitação no seminário A chegada ao seminário foi marcada por desafios.Luiz tinha 23 anos, era mais velho do que os outros candidatos, e sua formação escolar era básica.Os superiores desconfiavam de sua capacidade de acompanhar os estudos de filosofia e teologia. Antes de ser aceito, foi levado até Dom Scalabrini, que o submeteu a uma entrevista pessoal uma espécie de “prova vocacional”.O bispo, conhecido por sua sensibilidade pastoral, perguntou o que Luiz poderia falar sobre a fé, já que não dominava o latim nem os conceitos teológicos. Sem hesitar, ele respondeu com simplicidade: “Posso falar de Maria.” Diante da permissão, o jovem camponês começou a falar sobre a Virgem Maria com emoção, descrevendo-a como “a mãe que consola os pobres e protege os que sofrem”.As palavras simples, mas carregadas de fé, comoveram o bispo. Dom Scalabrini se levantou e, sorrindo, disse: “Quem ama Maria desse modo, já tem o coração preparado para servir a Deus.” E assim, Luiz Stefanello foi aceito como seminarista não por sua erudição, mas por sua devoção.Essa foi a primeira de muitas provas em que a fé simples venceria as limitações humanas. Anos de estudo e perseverança No seminário, Luiz enfrentou grandes dificuldades.Tinha dificuldade com o latim, lutava com os textos filosóficos e muitas vezes se sentia inferior aos colegas.Mas compensava com disciplina e oração. Passava noites estudando à luz de lamparina e, quando o cansaço era demais, rezava diante da imagem de Maria, pedindo forças. O livro relata que ele costumava repetir uma frase simples: “Se Maria disser ‘sim’ por mim, eu não falharei.” A fé mariana se tornou sua marca pessoal e acompanharia sua missão até os últimos dias, quando, já idoso, ainda rezava diariamente o rosário. Depois de anos de esforço, Luiz foi ordenado sacerdote em 1907. A missão que cruzou o oceano Logo após sua ordenação, veio a notícia: o novo padre seria enviado ao Brasil, país que recebia milhares de imigrantes italianos.A decisão o encheu de medo e coragem.Deixou novamente tudo a terra natal, os pais, os amigos e embarcou em um navio rumo ao desconhecido. A travessia foi longa e marcada por tempestades. No diário da congregação, há relatos de que Luiz passava as noites em oração no convés, confortando os passageiros e conduzindo preces durante a viagem. Quando o navio aportou no Porto de Santos, no litoral paulista, o jovem missionário chorou.Estava diante do novo campo de trabalho um mundo de fé e desafios. O padre do povo Padre Luiz foi encaminhado para o interior de São Paulo, onde comunidades de italianos tentavam reconstruir a vida nas colônias agrícolas.Falando o mesmo dialeto e vivendo as mesmas dificuldades, ele rapidamente conquistou a confiança dos colonos. Celebrava missas em pequenas capelas, visitava doentes e ajudava nas
Cordeirópolis, 1968: A Fila da Morte e o último suspiro das Marias Fumaças

Quando gigantes de ferro foram condenados ao esquecimento, mas retornaram para um derradeiro ato de glória Há histórias que a poeira do tempo tenta apagar. Histórias que acontecem nas sombras, longe dos holofotes, testemunhadas apenas por quem teve a sorte ou o peso de estar presente. A história da “Fila da Morte” de Cordeirópolis é uma dessas narrativas quase perdidas, salva da extinção apenas pela memória teimosa de ferroviários, pelo caderno de anotações de um jovem pesquisador, e pela recusa de alguns em deixar que o esquecimento vencesse. Esta é a história de quando a morte foi derrotada. Temporariamente. Mas derrotada. Um domingo de glória que ninguém sabia ser o último Imagine um domingo de sol, 17 de agosto de 1958. A Estação de Cordeirópolis fervilha de vida. Homens de paletó e gravata aguardam pacificamente nas plataformas em formato de flecha uma das marcas arquitetônicas que faziam desta uma das mais belas estações da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. O bar da estação serve pastéis quentinhos e refrigerantes gelados. Crianças correm pela plataforma, fascinadas por cada locomotiva que chega apitando, envolta em nuvens de vapor branco. A estação, inaugurada em 11 de agosto de 1876 como “Cordeiros”, havia sido ampliada em 1914, ganhando não apenas seu famoso bar, mas também dois grandes armazéns, oficinas de locomotivas, uma colônia para ferroviários e até uma subestação elétrica para alimentar as modernas locomotivas elétricas que já circulavam pela linha tronco. “Quando criança, eu vivia na estação vendo o movimento dos trens”, relembra Henrique Scatolin, que cresceu em Cordeirópolis. “Isso na década de 80. Mas meu pai contava que nos anos 50, aquilo era um formigueiro humano. Gente embarcando, desembarcando, mercadorias sendo carregadas. A estação era o coração da cidade.” Naquele domingo de 1958, ninguém imaginava que apenas dez anos depois, aquele coração pararia de bater. 1968: O ano em que as locomotivas foram sentenciadas A década de 1960 foi cruel com as locomotivas a vapor. O que antes eram rainhas inquestionáveis dos trilhos, símbolos de progresso e modernidade, tornaram-se rapidamente obsoletas aos olhos dos administradores ferroviários. As locomotivas diesel eram mais eficientes, não precisavam parar para reabastecer água, não exigiam foguistas para alimentar fornalhas, não soltavam fuligem que sujava vagões e irritava passageiros. O progresso, como sempre, tinha pressa. Em 1968, a Companhia Paulista já então estatizada decretou a “extinção” oficial das locomotivas a vapor. Todas elas. Centenas de máquinas que haviam construído o interior paulista sobre trilhos, que haviam transportado o café que enriqueceu São Paulo, que haviam levado imigrantes para suas novas vidas, foram aposentadas de uma vez. Mas o que fazer com tantos gigantes de ferro? A resposta veio fria e pragmática: sucata. E Cordeirópolis, ironicamente, foi escolhida como um dos locais para executar a sentença. A fila da morte: onde locomotivas aguardavam o fim Havia um pátio isolado na estação. Uma linha de desvio onde, ao longo de 1968, locomotivas a vapor começaram a ser enfileiradas. Paradas. Silenciosas. Sem fogo nas fornalhas, sem vapor nas caldeiras, sem vida nos cilindros. Os ferroviários começaram a chamar aquele lugar, em sussurros carregados de tristeza, de “A Fila da Morte”. “Era de partir o coração”, conta Marcos Paulo, ex-ferroviário e filho de ferroviário que trabalhou em Cordeirópolis. “Ver aquelas máquinas todas enfileiradas, paradas, esperando. Eram máquinas que a gente conhecia, que tinha nomes, histórias. A locomotiva tal que nunca tinha dado problema, a outra que era ‘temperamental’ mas tinha força de sobra. De repente, todas ali… mortas.” As locomotivas ficavam meses naquela linha. Enferrujando lentamente. Sendo invadidas por pássaros que faziam ninhos nas cabines. Perdendo a pintura sob o sol e a chuva. Gigantes de ferro sendo humilhados pelo tempo. E então, em noites sem lua, os caminhões chegavam. O segredo das madrugadas: escondendo a vergonha O que acontecia de madrugada em Cordeirópolis entre 1968 e o início dos anos 70 era conduzido com o sigilo de uma operação militar clandestina. A Companhia Paulista mudava os horários dos trens noturnos. Desviava composições. Tudo para que não houvesse testemunhas quando as locomotivas eram carregadas em carretas especiais ou colocadas sobre vagões prancha. “Meu pai contava que faziam tudo de madrugada para evitar ‘escândalo’”, revela Marcos Paulo. “Não queriam fotógrafos, não queriam curiosos, não queriam gente vendo aquelas locomotivas sendo levadas. Era como se estivessem escondendo um crime.” E talvez estivessem. Um crime contra a memória, contra a história, contra máquinas que haviam servido fielmente por décadas. Muitas locomotivas não apenas da Paulista, mas também da Sorocabana, da Noroeste do Brasil passavam pela linha tronco em vagões prancha, cobertas parcialmente, sempre de madrugada. O destino era sempre o mesmo: fundições, ferros-velhos, desmanches. Gigantes de ferro sendo transformados em panelas, pregos, vergalhões. Suas almas metálicas fundidas e reencarnadas em objetos banais, desprovidos de glória. “Teve ferroviário que chorou”, sussurra Marcos Paulo. “Principalmente os mais velhos. Era como ver amigos sendo executados.” Anos 70: Quando o progresso fracassou A ironia tem um senso de humor peculiar. Nos anos 70 as datas variam nos relatos, aconteceu algo que ninguém havia previsto: a subestação elétrica que alimentava as locomotivas elétricas da linha tronco apresentou problemas graves. As locomotivas elétricas, aquelas maravilhas da modernidade, pararam. Todas. “Disseram que iam resolver logo”, conta a professora aposentada em um relato que Ângelo Rafael, autor de “Um Trem Para a Saudade”, considera um dos mais emocionantes que coletou. “Mas começou a atrasar. Colocaram as máquinas a óleo [locomotivas diesel] para fazer o serviço das elétricas, mas não davam conta.” A ferrovia entrou em colapso. Cargas atrasando. Passageiros indignados. A Companhia Paulista, sempre tão orgulhosa de sua pontualidade britânica, vendo seu sistema desmoronar. E então, alguém teve uma ideia desesperada. Uma ideia impossível. Uma ideia que soava como loucura: e se reacendêssemos as locomotivas a vapor? O impossível: Ressuscitando os mortos Imagine a cena. Ferroviários veteranos sendo chamados de volta. Homens que haviam se despedido das máquinas a vapor, que haviam limpado suas últimas caldeiras com lágrimas nos olhos, retornando aos pátios de Cordeirópolis e outras estações. Abrindo as portas das
Correio de Cordeirópolis registrava cada detalhe do cotidiano, transformando a rotina da cidade em memória impressa

Em 30 de julho de 1988, O Correio de Cordeirópolis chegava às ruas com um claro recado: quem comandava o jornal era a política. E isso fica evidente logo na capa da edição. Várias matérias e entre elas giravam em torno de quem tinha maior destaque na cidade:a Segurança Pública e o legado dos família Levy. Multas, caos no trânsito e o início da era da punição “Multas altas podem reduzir infrações, prevê delegado.” Foi assim a manchete que o delegado José Antônio Barbosa se posicionava: para acabar com desrespeito e acidentes, teria que doer no bolso.Ele dizia que o aumento das autuações fazia parte de um novo plano nacional e que, em Cordeirópolis, o trânsito já dava sinais de preocupação: A cidade ganhava mais carros do que estrutura e o jornal tratava o tema como alerta, mas também como apoio às medidas do governo federal. Aqui, o jornal assumia seu tradicional papel da época: ser a voz das autoridades. Cássio de Freitas Levy: de político a “patrimônio” A reportagem interna afirmava sem hesitar: “Cássio de Freitas Levy: um patrimônio da cidade” Não era apenas uma matéria. Era uma homenagem completa ao ex-prefeito que governou duas vezes e tinha forte ligação com o desenvolvimento econômico da cidade. Sua história foi contada como a de um herói local: O texto não escondia seu lado: era elogio atrás de elogio. É a prova viva de como o jornal local dos anos 80 funcionava junto a quem estava no destaque da cidade. Uma cidade em crescimento e disputa O restante da edição mostra outros cenários de uma Cordeirópolis que se transformava: Era a cidade vivendo sua rotina, enquanto o jornal registrava aquilo que queria que ficasse para a história. Crítica histórica: o jornal como ferramenta de influência Ao analisar a edição hoje, o que mais chama atenção é a proximidade do jornal com os poderosos.A linguagem é respeitosa, institucional, cheia de adjetivos e sem questionamentos. No papel, o povo aparecia mais nas propagandas do que nos textos. O jornal narrava o que a cidade via, mas a visão de quem mandava. Memória viva de um tempo político Rever essas páginas é entender: Naquele momento… A comunicação não era só notícia. Era poder. Era imagem. Era influência. Agora, décadas depois, esse jornal vira documento histórico.Ele revela como Cordeirópolis negociava suas prioridades e sua identidade. E revela, também, o quanto a imprensa mudou. 📍 Fonte: O Correio de Cordeirópolis – Edição de 30 de julho de 1988📚 Acervo Digital – Projeto Tá no Arquivo
Elhiu Root, São Bento e Loreto: As estações que receberam nomes ilustres

Quando diplomatas, santos e compositores batizaram paradas no interior paulista Nem todas as estações ferroviárias nasciam com nomes óbvios. Enquanto algumas herdavam denominações de fazendas, córregos ou capelas locais, outras recebiam batismos que contavam histórias bem mais complexas histórias que envolviam diplomacia internacional, padroeiros religiosos e até a criação de uma das obras musicais mais icônicas do Brasil. No Ramal de Descalvado, três estações se destacavam por carregar nomes que transcendiam a geografia local: Elhiu Root, São Bento e Loreto. Cada uma dessas estações guardava narrativas que revelavam como a ferrovia não era apenas infraestrutura de transporte, mas também palco de encontros culturais, políticas de Estado e inspiração artística. Juntas, elas demonstravam que os trilhos paulistas conectavam o interior não apenas às capitais brasileiras, mas ao mundo. Elhiu Root: Quando um secretário de estado americano virou estação O nome mais inusitado do ramal era, sem dúvida, Elhiu Root. Para quem não conhecia a história, soava como um mistério linguístico seria corruptela de algum termo tupi? Homenagem a algum fazendeiro esquecido? A verdade era ainda mais surpreendente: tratava-se de uma homenagem ao secretário de Estado dos Estados Unidos que visitou o Brasil em 1906. Elihu Root (a grafia original, ligeiramente diferente) foi uma figura-chave da diplomacia americana no início do século XX. Advogado brilhante, Secretário de Guerra sob William McKinley e Theodore Roosevelt, e posteriormente Secretário de Estado, Root receberia o Prêmio Nobel da Paz em 1912 por seu trabalho na arbitragem internacional e promoção da paz hemisférica. Sua visita ao Brasil, em julho de 1906, foi acontecimento de enorme importância diplomática. Root foi o primeiro Secretário de Estado americano a visitar a América do Sul, em uma turnê que incluiu Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. O objetivo era claro: fortalecer relações pan-americanas e consolidar a influência dos Estados Unidos no continente. No Brasil, Root foi recebido com honras de chefe de Estado. Discursou no Congresso Nacional, reuniu-se com o presidente Rodrigues Alves, participou de jantares oficiais no Palácio do Catete. Sua passagem pelo país foi amplamente coberta pela imprensa, que exaltava o “estreitamento dos laços de amizade entre as duas grandes repúblicas americanas”. Mas o que levou uma pequena estação no interior paulista a receber seu nome? Segundo consta relatos da época: foi uma decisão política e econômica ao mesmo tempo, já que a Companhia Paulista tinha fortes conexões com capitais estrangeiros, especialmente ingleses e americanos. Homenagear Root era uma forma de sinalizar aos investidores internacionais que o Brasil e particularmente São Paulo estava aberto aos negócios, era moderno, integrado ao mundo civilizado. A estação foi inaugurada poucos meses após a visita de Root, em cerimônia que contou com autoridades estaduais e representantes da colônia americana em São Paulo. Jornais da época noticiaram o evento como “mais um testemunho da cordialidade que une as nações irmãs do continente”. A arquitetura da estação Elhiu Root seguia o padrão de estações médias da Companhia Paulista: prédio em alvenaria de tijolos, telhado de quatro águas com telhas francesas, plataforma coberta. Nada de excepcional, exceto por uma placa de bronze instalada na parede principal que explicava a origem do nome e trazia um breve perfil biográfico de Root em português e inglês. Descendentes de ferroviários contam que aquela placa era motivo de orgulho local. “As pessoas gostavam de mostrar para visitantes, de explicar quem era aquele americano. Dava um ar de importância, de cosmopolitismo. Era como se Elhiu Root tivesse colocado aquele cantinho do interior paulista no mapa do mundo.”, disse o autor do livro. A estação funcionou regularmente por décadas, servindo fazendas de café e, posteriormente, de cana-de-açúcar. Com o declínio ferroviário, foi desativada nos anos 1970. O prédio resistiu por algum tempo, mas a famosa placa de bronze desapareceu, provavelmente roubada por caçadores de metais nas décadas de abandono. Hoje, poucos se lembram que aquele nome exótico homenageava um Prêmio Nobel da Paz que jamais voltou ao Brasil, mas que por alguns meses de 1906 simbolizou a aspiração brasileira de integração ao mundo desenvolvido. “Quando criança eu morei de frente a estação . Então minha vida nessa época sempre foi baseada nos trens. Brincávamos nos trilhos, no qual convivíamos diariamente com a movimentação da ferrovia e lembro que haviam bastante vagões de gado que sempre ficavam no pátio frente ao embarcadouro de animais. Vagões que entravam e saiam do armazém e muito mais!’’ relato de maria Helena Bueno Santo. São Bento: O Gabarito da Companhia Paulista Se Elhiu Root representava a diplomacia internacional, São Bento simbolizava excelência técnica. A estação era conhecida entre ferroviários como o “gabarito” da Companhia Paulista, termo que designava o padrão de perfeição que todas as outras estações deveriam almejar. O nome vinha de São Bento de Núrsia, patriarca do monasticismo ocidental, santo associado à ordem, disciplina e trabalho metódico. Não era coincidência: a Companhia Paulista era famosa por seu rigor operacional, e São Bento encarnava esses valores. Inaugurada no ano de 1885, apenas com um só barracão, no qual era divido o armazém e estação na mesma construção. Durando até 1922, quando foi construída a estação exclusivamente para passageiros ao lado do barracão antigo. O prédio seguia estilo eclético com influências neoclássicas: frontão triangular, colunas dóricas, simetria perfeita. As cores ocre e branco eram aplicadas com tal cuidado que pareciam repintadas semanalmente, embora na verdade a manutenção fosse apenas trimestral. Ficando conhecido as duas construções como ‘’São Bento novo’’ e ‘’são Bento velho’’. Seu pátio era formado por três trilhos, uma via principal e duas desviadas, chegando a contar com um desvio de um embarcadouro de gado que lá existia. “Na época eu era bem criança, os ferroviários da estação estavam manobrando alguns vagões (creio que que seja os vagões do desvio do embarcadouro de gado), nisso não sei bem o que houve, uma mulher perdeu seu equilíbrio, pois era um pouco gorda, e caiu da plataforma, no exato momento que estavam passando com os vagões…. não conseguiram parar o trem pois já estava muito ‘’encima’’, e foi esmagada pelas rodas de aço de um dos
Ibicaba: o império do senador Vergueiro que terminou nas mãos da família Levy

Documentos, inventários e relatos revelam como a fazenda símbolo da colonização europeia entrou em declínio e passou para a nova administração dos Levy A história da Fazenda Ibicaba é uma das mais marcantes do interior paulista. Nascida como o grande experimento do senador Vergueiro para substituir o trabalho escravo por colonos europeus, a propriedade atravessou momentos de esperança, conflitos, prosperidade e declínio até chegar à venda para a família Levy, que assumiu uma fazenda já carregada de décadas de memória e tensão. Tudo começa em 1846, quando foram registrados os primeiros grupos de imigrantes que chegaram para trabalhar em Ibicaba. As listas manuscritas conservadas no livro mostram os nomes de homens, mulheres e crianças que aceitaram cruzar o oceano em busca de uma vida que acreditavam ser mais justa. Eles vinham para o sistema de parceria criado por Vergueiro, que prometia moradia, uma área para plantar, participação nos lucros e a possibilidade de, com o tempo, construírem suas próprias oportunidades. Os contratos de parceria reproduzidos no livro por meio de recortes de jornais e documentos deixavam claro que os colonos deveriam pagar sua viagem e adiantamentos com o próprio trabalho. Em troca, seriam parceiros da fazenda, e não empregados. No papel, era uma ideia moderna. Na prática, o sistema gerava uma relação de dependência: a administração definia preços, adiantamentos, prazos, juros e condições. A vida no campo revelava que a liberdade prometida era bem mais estreita do que parecia. É nesse ponto que entra uma figura central citada no próprio livro: Thomas Davatz. Em “Memórias de um Colono no Brasil”, obra mencionada no livro, Davatz descreve com sinceridade as dificuldades enfrentadas pelos europeus que trabalharam em Ibicaba. Ele relata a frustração de colonos que chegavam cheios de esperança e acabavam presos a dívidas, atrasos e exigências que não conseguiam cumprir. Suas memórias revelam desgaste, desconfiança e um ambiente onde o sonho de parceria se transformava, muitas vezes, em sentimento de injustiça. O impacto de Davatz foi tão grande que suas denúncias ecoaram na Europa, levando governos a rever o envio de imigrantes ao Brasil. Para o livro da família Levy, essa referência é essencial para compreender o clima da época e o peso histórico que a fazenda carregava. Com o passar das décadas, a situação econômica da fazenda se deteriorou. A prosperidade dos primeiros anos foi dando lugar a crises, especialmente entre 1857 e 1865, e o fim do século XIX encontrou Ibicaba em condições fragilizadas. Antes da venda, foi realizado um inventário completo da propriedade um documento detalhado que listou tudo o que ainda compunha o gigantesco patrimônio da fazenda. Os registros mostram uma estrutura impressionante: uma sede com dezenas de cômodos, salas de visita, sala de bilhar, sala de jantar, quartos de família e hóspedes, administração própria, dependências de serviço e uma cozinha equipada. Ao redor dela, distribuíam-se casas de colonos, oficinas, ferraria, tulhas, paiol, cocheiras, depósitos, hospital, padaria e instalações destinadas ao beneficiamento do café. A fazenda funcionava como um organismo autossuficiente, com áreas de produção, apoio, moradia e serviços internos. Entre os bens avaliados estavam móveis finos, mesas de madeira nobre, cadeiras austríacas, camas francesas, sofás, espelhos grandes, estantes, utensílios de metal, peças de mármore, relógios, luminárias, equipamentos agrícolas e animais de trabalho como bois, cavalos, burros e vacas. Também foram analisadas extensas porções de terras, compostas por cafezais novos e antigos, matas, pastagens, roças e áreas livres. A soma de todos esses bens ultrapassou 444:965$900, mais de 444 contos de réis, um valor que ilustra o tamanho e a importância econômica de Ibicaba, mesmo já em decadência. As últimas páginas do bloco documental mostram o passo final: a propriedade foi oficialmente arrematada e transferida para a família Levy. A Carta de Arrematação confirma a mudança de mãos e encerra o ciclo Vergueiro após décadas de altos e baixos. A partir desse momento, a fazenda deixa de ser apenas o símbolo de um projeto pioneiro de colonização e passa a integrar a trajetória dos Levy uma família que, mais tarde, também se tornaria parte fundamental da história de Limeira, Cordeirópolis e região. A venda da Fazenda Ibicaba não foi apenas um negócio imobiliário. Foi o fim de um capítulo decisivo da história paulista e o início de outro. Um capítulo marcado pela chegada dos primeiros imigrantes, pelos conflitos revelados por Davatz, pela força de um projeto que tentou reinventar o trabalho no campo e, finalmente, pela transição para uma nova gestão, que herdou uma fazenda grandiosa, complexa e cheia de memória. Assim, Ibicaba mudou de mãos, mas nunca deixou de refletir as transformações do interior paulista da promessa de parceria à reorganização econômica conduzida por novas famílias proprietárias. E a família Levy, ao assumir a fazenda, tornou-se parte dessa história, abrindo caminho para um novo tempo em um dos territórios rurais mais emblemáticos do estado. Fonte histórica Este artigo foi baseado no livro “Os Levy” , editado pela Biblioteca Paulo Masuti Levy, uma obra do álbum da família Levy, do ano de 2023. O texto aqui apresentado é uma adaptação narrativa para o site Tá No Arquivo, mantendo os fatos históricos documentados.
A fé que acendeu Iracemápolis: procissões, promessas e as festas que paravam a cidade

Você lembra daquela festa antiga, daquelas noites em que a praça parecia outro mundo?Lembra do cheiro de vela, do som do sino, da rua de terra tomada por vizinhos que nem sempre se falavam… mas ali, naquele momento, caminhavam juntos?Pois é. Iracemápolis nasceu disso: da fé que unia, das tradições que seguravam o coração da cidade no lugar.” A história religiosa da cidade de Iracemápolis não começa com templos grandes ou estruturas prontas. Começa pequeno. Começa simples. Começa em uma capelinha improvisada, onde a vila de Santa Cruz da Boa Vista encontrava sua força para viver e sobreviver. Era ali que se decidiam casamentos, se rezavam missas, se acolhiam viajantes e se choravam despedidas. Quando a fé era o centro da vida Para quem vivia naquelas décadas, religião não era só fé, era rotina, era segurança, era convivência. A igreja era o ponto mais importante da vila. Era onde as pessoas se reconheciam, se ajudavam e até resolviam os conflitos do dia a dia. E no meio disso tudo, havia as festas. E como havia festas. A Festa de São Sebastião: o evento que fazia a cidade pulsar Se havia um dia em que tudo mudava, era na festa de São Sebastião.Segundo José Zanardo, esse era o grande acontecimento do ano. Vinham gente das fazendas, moradores da vila, tropeiros, crianças correndo pela praça.As barraquinhas se montavam cedo. O cheiro de comida tomava o ar. Os leilões arrancavam risadas e promessas. As rezas ecoavam pela madrugada.Era mais que uma festa.Era o momento em que a cidade dizia: “Estamos vivos.” Procissões que deixavam a vila em silêncio Quando o sino tocava, a cidade inteira parava. As procissões eram longas, emocionantes, cheias de fé.As velas iluminavam as ruas de terra.As crianças vestidas de branco caminhavam devagar.O andor balançava nas mãos dos devotos.E cada passo deixava uma marca — não no chão, mas no coração de quem vivia ali. Quermesses: comida, encontro e destino As quermesses eram outro espetáculo à parte.Tinha doce, tinha rifa, tinha frango que virava disputa.Mas, acima de tudo, tinha encontro.Muita gente da cidade diz até hoje:“Meu primeiro amor começou ali… na quermesse.” Promessas, curas e histórias que viraram memória Zanardo registra relatos que emocionam:Famílias fazendo promessas de pés descalços.Vizinhos acendendo velas por horas para pedir cura.Gente que jurava ter vivido um milagre. Numa cidade pequena, o milagre de um virava esperança para todos. De ontem pra hoje: o que mudou? Quase tudo.As estruturas das igrejas cresceram.As festas se modernizaram.Os eventos ganharam palco, som, iluminação. Mas uma coisa permanece:O brilho no olhar de quem participa.A emoção ao carregar um andor.A força da fé que atravessa gerações. O legado que a religião deixou na cidade A religião não foi apenas uma prática espiritual.Foi a coluna que sustentou a vida social da vila.Foi a mão que acolheu, o ombro que amparou, o elo que uniu famílias, vizinhos, estranhos.Quando Iracemápolis ainda engatinhava, foi a fé que segurou a cidade no colo. Convite ao leitor Se você tem fotos antigas de festas, procissões ou capelinhas… se já carregou um andor ou acendeu uma vela em dia difícil…Essa história também é sua. Acesse o Tá no Arquivo e ajude a manter viva a memória religiosa que moldou Iracemápolis. Baseado no livro “Iracemápolis: Fatos e Retratos”, de José Zanardo (2008)
Toque de classe nos anos 60: quando o Cordeiro Clube viveu sua era de ouro

Nos anos 1960, Cordeirópolis vivia um tempo de glamour, elegância e encontros sociais marcantes. A cidade, ainda pequena, transformava-se nas noites de festa do Cordeiro Clube, o centro da vida social da época, onde moda, música e tradição se encontravam em eventos que se tornaram parte viva da memória local. O Jornal Expresso, através da coluna “Retratos do Passado” em edição de março de 2008, relembrou esse período de ouro ao destacar os desfiles de moda, os concursos de elegância e os bailes de gala que marcaram a história da cidade. Sob a liderança do saudoso Aguinaldo Dias, então presidente do clube, surgiram iniciativas que encantaram o público e movimentaram a sociedade cordeiropolense: o concurso “As Dez Mais Elegantes”, os desfiles de moda e penteados, os bailes de debutantes e o tradicional “Rainha dos Operários”. “Eram festas maravilhosas, muito lindas e animadas, uma época saudosa de grandes bailes. Tenho certeza que quem participou daquela fase não esquece as noites majestosas”, recordou Aguinaldo Dias (in memoriam) em entrevista concedida ao jornal na época. Esses eventos não eram apenas encontros sociais eram verdadeiros desfiles de costumes, beleza e comportamento. As jovens desfilavam com penteados altos, vestidos rodados e um brilho no olhar típico da geração influenciada por Elvis Presley e The Beatles. Os bailes, regados à música ao vivo e trajes de gala, representavam o auge da vida cultural e social da cidade. Os registros fotográficos publicados na época mostram nomes que se tornaram ícones daquela geração: Ivani Leme Monetti, Neusa e Gusmar Carvalho, Jandira Carandina, Nélia Schiavetti, entre tantos outros. As imagens revelam uma época em que o requinte e o senso de comunidade se misturavam, e cada evento se tornava um marco na memória coletiva. Moda, juventude e transformação A moda dos anos 60 não foi apenas estética, ela simbolizou liberdade, ousadia e o início de uma nova mentalidade. O Cordeiro Clube acompanhava essa mudança: as festas tornaram-se vitrines para o novo comportamento feminino, em que as mulheres ganhavam destaque e voz em um cenário social que começava a se modernizar. Os concursos, as homenagens e os bailes davam o tom de uma cidade em crescimento, que já mostrava traços do dinamismo que viria nas décadas seguintes. Era o tempo em que o glamour se expressava nas colunas sociais e nas edições especiais dos jornais hoje, guardadas como preciosas relíquias no acervo do Tá no Arquivo. Mais que um evento social, aquele “toque de classe” simbolizava um estilo de vida, um período em que o simples ato de se reunir para celebrar a vida se tornava parte da identidade de Cordeirópolis.
Remanso, Araras e a Nestlé: o cheiro de chocolate que nunca foi embora

Como as estações do Ramal de Descalvado se transformaram em palcos de encontros, comércio e maravilhas circenses Há memórias que o tempo não apaga. O apito distante da locomotiva cortando a madrugada. O aroma adocicado de chocolate fundido misturado ao vapor das caldeiras. A algazarra das crianças correndo pela plataforma quando o circo chegava com seus vagões repletos de mistérios e animais exóticos. As estações do Ramal de Descalvado não eram apenas pontos de parada, eram portais onde o mundo chegava aos rincões paulistas. Entre Descalvado e Porto Ferreira, três localidades ilustram perfeitamente essa época em que as ferrovias costuravam não apenas territórios, mas também sonhos, comércio e comunidades: Remanso, com sua fazenda centenária; Araras, com seus imponentes armazéns gêmeos; e a fábrica da Nestlé, cujo ramal particular transformou Araras em uma das mais importantes estações de carga da região. Remanso: A estação da Fazenda Velha No quilômetro 173 da linha tronco da Companhia Paulista, a Estação Remanso surgia como um ponto de apoio fundamental para o escoamento da produção cafeeira, com uma das propriedades rurais mais antigas e produtivas da região. A estação, construída no padrão arquitetônico característico da Companhia Paulista, edifício térreo em alvenaria com telhas francesas e alpendre, servia também como ponto de encontro da comunidade dispersa pelos sítios e fazendas circunvizinhas. Ali chegavam as encomendas da capital, as notícias frescas dos jornais, os medicamentos da farmácia. Araras: A estação dos dois armazéns Mais movimentada e estruturada, a Estação Araras, no quilômetro 134, distinguia-se por uma particularidade arquitetônica: possuía dois armazéns de carga construídos em épocas diferentes, testemunhando o crescimento vertiginoso do comércio agrícola local. O primeiro armazém, contemporâneo à inauguração da estação em 1880, seguia o modelo padronizado da Companhia Paulista: estrutura robusta em alvenaria, amplas portas de correr que facilitavam o carregamento, piso elevado alinhado à altura dos vagões. Com o aumento exponencial da produção agrícola não apenas café, mas também algodão, cereais e, posteriormente, frutas cítricas , a estação revelou-se insuficiente. Em 1922, a Companhia Paulista construiu o segundo armazém, ainda maior que o primeiro, dotado de melhorias técnicas como cobertura metálica, ventilação aprimorada e sistemas de pesagem mais modernos. Os dois edifícios, lado a lado, transformaram Araras em um dos principais entroncamentos de carga do Ramal de Descalvado. Há relatos que tinham dias que não conseguia andar na plataforma de tanta mercadoria, eram sacos de café empilhados até o teto do armazém, carretas de boi puxando carroças carregadas, caminhões descarregando. Era um formigueiro. E quando chegava o trem da Nestlé então… aí o movimento triplicava. O ramal da Nestlé: Quando o chocolate chegava de trem Em 1921, a multinacional suíça Nestlé inaugurou em Araras uma de suas primeiras fábricas no Brasil, dedicada inicialmente à produção de leite condensado e, posteriormente, chocolate e outros derivados lácteos. A decisão de instalar-se ali não foi casual: Araras oferecia abundância de leite fresco das fazendas leiteiras da região, água de qualidade, e fundamentalmente estava conectada à malha ferroviária. Mas não bastava estar próxima à linha férrea. Para otimizar a logística, a Nestlé construiu um ramal particular de aproximadamente 800 metros que conectava diretamente as instalações fabris à Estação Araras da Companhia Paulista. Esse ramal, inaugurado junto com a fábrica e operado até 1980, permitia que vagões carregados de matéria-prima chegassem literalmente à porta da indústria, e que a produção fosse despachada diretamente para todo o país. O ramal particular operava com locomotivas próprias da Nestlé, inicialmente a vapor e, posteriormente, pequenas locomotivas diesel que faziam o vai-e-vem entre a fábrica e a estação principal. Nos anos de pico produtivo, entre 1950 e 1970, não era raro ver composições exclusivas da Nestlé com dezenas de vagões: chegavam leite em latões, açúcar ensacado, cacau importado; saíam latas de leite condensado, caixas de chocolate, produtos acabados rumo aos centros consumidores. A presença da Nestlé transformou Araras economicamente e socialmente. A fábrica tornou-se o maior empregador da cidade, atraiu trabalhadores especializados, estimulou o comércio local. E a estação ferroviária, porta de entrada e saída de tudo isso, vivia constantemente perfumada pelo aroma inconfundível de chocolate sendo fabricado a poucos metros dali. O ramal particular funcionou até 1980, quando a empresa optou pelo transporte rodoviário, seguindo a tendência nacional de abandono progressivo das ferrovias. Os trilhos foram arrancados, o trajeto foi incorporado às instalações fabris, mas a memória permaneceu viva entre os moradores mais antigos. Porto Ferreira e o circo dos elefantes Se Remanso tinha sua fazenda e Araras tinha sua fábrica de chocolate, Porto Ferreira destino final do ramal tinha algo igualmente memorável: era ponto de parada preferencial dos circos itinerantes que cruzavam o interior paulista. Os circos viajavam em vagões especialmente adaptados: alguns para os artistas e suas famílias, outros transformados em jaulas móveis para os animais como cavalos adestrados, leões, tigres, macacos e, nas companhias maiores, os cobiçados elefantes. O desembarque era um espetáculo à parte, transformando a plataforma da estação em palco de maravilhamento coletivo. Os circos preferiam chegar de trem não apenas pela logística, seria impensável transportar animais de grande porte por estradas precárias em caminhões da época, mas também pelo impacto publicitário. A chegada do circo pela estação ferroviária era, em si, propaganda gratuita e eficaz. Em poucas horas, toda a cidade sabia que o espetáculo havia chegado. Além dos animais exóticos, vinham as lonas, os mastros, os figurinos, os equipamentos de acrobacia. O desembarque durava horas e mobilizava dezenas de trabalhadores , tanto do circo quanto da ferrovia, que auxiliavam na operação com empilhadeiras e carrinhos de mão. “A estação ficava toda cheia de cartazes coloridos anunciando o espetáculo”. “E durante a semana que o circo ficava montado na cidade, a gente voltava na estação só para ver os vagões parados no desvio. Era como se o mundo tivesse vindo nos visitar.” Quando as estações eram pontos de encontro Olhar para essas três localidades do Ramal de Descalvado: Remanso, Araras e Porto Ferreira; é compreender que as estações ferroviárias transcendiam sua função meramente logística. Elas eram centros de gravitação social, lugares onde convergiam trabalho
Fugindo da fome e da guerra: a incrível jornada da família Levy até o interior paulista

Poucas famílias conseguiram deixar um legado tão marcante na história do interior paulista quanto os Levy. Vindos da Alemanha em meados do século XIX, eles atravessaram oceanos, guerras e transformações sociais até se tornarem parte essencial da construção econômica e cultural de Limeira, Cordeirópolis e região. Um livro que resgata séculos de memória O registro dessa trajetória ganhou forma em uma obra idealizada por Paulo Masuti Levy, descendente direto do patriarca Jacob Levy. Fascinado pelas histórias contadas pelos mais velhos, Paulo iniciou o projeto com o propósito de reunir fotos, documentos e lembranças espalhadas entre os ramos familiares. O resultado foi um verdadeiro álbum de família, que vai além da genealogia — é uma narrativa de fé, resistência e reconstrução. O autor contou com a ajuda da irmã Antonieta Levy, responsável pela organização dos textos, e do pai, que colaborou com recordações e documentos antigos. O projeto, que começou como um simples levantamento de registros, transformou-se em um livro que atualiza a genealogia da família até o ano de 2022, reunindo mais de dois mil descendentes espalhados pelo país. O símbolo que representa a família, o Jequitibá da Fazenda Ibicaba, é o emblema da força e da longevidade dos Levy: raízes profundas e galhos que se espalham em muitas direções, mas que permanecem firmes em sua origem. Bollendorf: o início de tudo A história começa em Bollendorf, uma pequena vila do distrito de Bitburg, na Alemanha, às margens do rio Sauer, próxima à fronteira com Luxemburgo. Durante o século XIX, a comunidade judaica local viveu um período de prosperidade e integração. Os judeus eram comerciantes, artesãos e pequenos industriais que contribuíam ativamente para o desenvolvimento da região. Entre eles estava Jacob Levy, registrado em documentos de 1847 como morador da casa nº 14. Ele fazia parte de uma geração que acreditava na educação, no trabalho e na convivência pacífica, mas que acabaria enfrentando as sombras do antissemitismo crescente na Europa. Com a deterioração das condições econômicas e a intensificação das perseguições religiosas, Jacob decidiu emigrar. Em 1857, ele e sua família embarcaram para o Brasil — uma decisão que marcaria o início da presença Levy em terras paulistas. Os judeus em Bollendorf: fé, convivência e perseguição O historiador Paul Colljüng relata que os judeus de Bollendorf viveram cerca de 90 anos de relativa harmonia com os vizinhos cristãos, participando da economia e da vida social local. Contudo, a partir do início do século XX, o avanço do nacionalismo e das ideias antijudaicas mudou esse cenário. Durante o regime nazista, a violência se intensificou. O ponto mais dramático foi a “Noite dos Cristais” (Kristallnacht), em novembro de 1938, quando sinagogas e residências judaicas foram destruídas. Em Bollendorf, os ataques resultaram em espancamentos, prisões e incêndios, entre as vítimas estavam membros da própria família Levy, como Daniel, Karl e Max Levy. Com a guerra, boa parte da comunidade foi dizimada. Os nomes dos Levy aparecem entre os deportados e combatentes mortos. Após o conflito, apenas poucos sobreviventes retornaram. Em homenagem, o governo local restaurou monumentos e lápides judaicas, lembrando os cidadãos que outrora fizeram parte da vida de Bollendorf — entre eles, os Levy. Da Alemanha ao interior paulista: a chegada à Fazenda Ibicaba Em 1857, os Levy chegaram ao Brasil e se estabeleceram na Fazenda Ibicaba, que pertencia a Limeira (SP) na época, uma das propriedades do senador Nicolau de Campos Vergueiro, onde funcionava a Colônia Vergueiro, símbolo da imigração europeia no país. A Fazenda Ibicaba representava uma nova oportunidade para famílias europeias que buscavam liberdade e trabalho digno após o período de perseguições. Foi lá que os Levy iniciaram sua vida brasileira, trabalhando inicialmente na agricultura, dentro do sistema de parceria que substituía a mão de obra escrava. Embora o projeto fosse inovador, não estava livre de tensões. Os imigrantes enfrentavam dívidas e condições difíceis, o que gerou revoltas e protestos. Mesmo assim, famílias como a Levy souberam se adaptar, desenvolver novas atividades e prosperar. O Jequitibá centenário que se ergue na Fazenda Ibicaba é descrito no livro como o símbolo vivo da família: um marco de resistência, fé e continuidade. A consolidação em Limeira e Cordeirópolis Com o fim do trabalho agrícola, a família Levy migrou para os centros urbanos, principalmente Limeira então uma cidade em plena expansão comercial. Ali, começaram a abrir casas de comércio, armazéns e oficinas, tornando-se referência em honestidade e empreendedorismo. Os Levy desembarcaram no Brasil trazendo na bagagem uma imagem de Nossa Senhora, símbolo da fé que os guiaria dali em diante. O bisavô José foi batizado por Dona Angélica, esposa do senador Vergueiro, que acolheu a família e tornou-se sua madrinha espiritual. Assim, os Levy abraçaram o catolicismo e encontraram em Ibicaba o começo de uma nova vida. Eles se destacaram como trabalhadores dedicados e como uma das famílias mais influentes da região. Ao longo do tempo, os Levy expandiram seus negócios para Bombocado (hoje Cordeirópolis), Piracicaba, Rio Claro e Araras, ajudando a fortalecer a economia do interior paulista. As gerações Levy e o legado regional A genealogia do livro apresenta Jacob Levy como o tronco da árvore, seguido por seus filhos — Daniel, Victor, Samuel, Julius e Albert Levy que deram origem a diferentes ramos. Muitos deles se casaram com membros de famílias tradicionais da região, como Masuti, Lotti, Bianchi, Mello e Barros, ampliando a rede de influência econômica e social. As gerações seguintes seguiram caminhos diversos: alguns se tornaram industriais, outros comerciantes, profissionais liberais ou servidores públicos. Muitos foram responsáveis por entidades beneficentes e por ações culturais que marcaram Limeira e Cordeirópolis. O levantamento genealógico reúne mais de 2.000 descendentes, com registros que abrangem cidades como Limeira, Cordeirópolis, Piracicaba, Rio Claro, Campinas e São Paulo capital. A força das raízes A história da família Levy é uma narrativa de resistência e reconstrução. De um lado, o passado europeu manchado pela intolerância; do outro, a fé e o trabalho que floresceram no solo brasileiro. O livro de Paulo Masuti Levy é mais do que um registro genealógico é um testemunho histórico
Os exorcismos de Cascalho: As histórias que ninguém esqueceu

“Chegava romeiro dentro de um caminhão, assim, acorrentado.” Esta frase não vem de um filme de terror. Vem da memória de Sr. Guilherme, morador de Cascalho, descrevendo o que acontecia aos finais de semana na pequena colônia italiana. No artigo anterior, conhecemos padre Luis Stefanello, o missionário que chegou em 1911 para cuidar dos imigrantes italianos e acabou se tornando uma lenda. Vimos como sua fama se espalhou. Como pessoas vinham de estados inteiros procurá-lo. Mas ainda não respondemos à pergunta que todos fazem: o que realmente acontecia em Cascalho? Hoje, vamos mergulhar nos relatos. Nas histórias que até hoje fazem os mais velhos baixarem a voz. Nos casos que transformaram um simples padre em “o exorcista mais poderoso do interior de São Paulo”. Prepare-se. Algumas dessas histórias vão te arrepiar. “Como vinha gente” Domingo de manhã em Cascalho. Anos 1930, 1940, 1950. A rotina era sempre a mesma: a partir de sábado à noite, começavam a chegar os caminhões. Vinham de Limeira, Piracicaba, Cordeirópolis. Mas também de mais longe, Minas Gerais, Paraná, até Goiás. “Vinham tudo de fora. Vinham de longe. Até do Paraná.” O movimento era tão intenso que transformou a economia local. O Hotel Viaduto vivia lotado de peregrinos que precisavam pernoitar. O Bar do Rosolem preparava almoços para dezenas de famílias. Havia até uma linha informal de carros de praça fazendo o trajeto Cordeirópolis-Cascalho exclusivamente para levar gente ao padre. “Em Cordeirópolis a Cascalho tinha os automóveis, que tinha aquele senhor Rocha e o Romano. Eles viviam só de trazer gente aqui”, lembrava Sr. Guilherme. Mas o que essas pessoas vinham buscar? Libertação. O homem que tinha o diabo. Vamos começar com uma das histórias mais detalhadas, contada por Sr. João: “Gente lá de Minas, do fundo de Minas, de caminhão coberto e encerrado, aparecia cheio de gente. Só que ele tinha posto uma lei: que ele só dava benção a uma hora da manhã, antes e depois ele não atendia ninguém mais, porque era demais, por causa do serviço dele de atender os doentes.” Imagine a cena. Uma hora da madrugada. A igreja às escuras. Uma multidão esperando em silêncio. E então o padre chegava. “Ele dizia que era o diabo: “Você tá com o diabo, mas vai melhorar”. Ele dava a benção, o homem, às vezes, se jogava no chão…. e o padre ia lá colocava as vestes da missa e ia rezar a missa e o homem ali ninguém punha a mão.” A pessoa que estava sendo exorcizada se contorcia, gritava, tentava fugir. Mas ninguém podia tocar nela. Era o momento do confronto direto entre o padre e o que ele acreditava ser o espírito maligno. E então? “O homem, às vezes, se jogava no chão, às vezes, queria fazer…, passava aquilo.” Passava. A crise terminava. A pessoa ficava quieta. E muitos diziam estar curados. Alexandre: O jovem que vivia com o padre Um dos casos mais emblemáticos foi o de Alexandre. Segundo Sr. Fausto Stefanello (sobrinho do padre), Alexandre era um jovem que morava com Pe. Luiz. Tinha crises violentas, convulsões, gritos, comportamento agressivo. Hoje, provavelmente seria diagnosticado com epilepsia. Na época, acreditava-se que era possessão demoníaca. Mas aqui está o detalhe que humaniza tudo: Padre Stefanello não abandonou o rapaz. Ao contrário. Acolheu-o em sua própria casa. Cuidava dele. Tentava curá-lo. As tentativas de exorcismo foram muitas. O padre insistia, mesmo quando parecia não haver resultado. Até que, segundo os relatos, Alexandre foi morar em outra cidade e teve uma vida relativamente normal. Curou-se? Foi a fé? Foi o tempo? Foi a medicação que eventualmente conseguiu? O povo de Cascalho prefere acreditar que foi o padre. E talvez, de certa forma, tenha sido, não necessariamente por expulsar um demônio, mas por oferecer acolhida, cuidado e esperança quando ninguém mais sabia o que fazer. As irmãs: Sete noites de terror Esta é, sem dúvida, uma das histórias mais impressionantes. Duas irmãs da família Coletta, vindas de Araras, começaram a ter comportamentos estranhos. Segundo os relatos, cada uma delas estava possuída por sete espíritos. Sete. Dona Emília contava que Padre Stefanello teve que trabalhar durante sete noites consecutivas para expulsar os demônios. “Então, a primeira vez que tirou, que veio ali, foi umas moças do Coletta, duas irmãs que moravam em Araras. Diz que elas tinham 7 espíritos cada uma. Elas vieram aí 7 noites. Toda a noite enchia a igreja de gente, porque a primeira vez, elas ‘trepavam’ pra parede. Ele trocava, ele molhava de novo. Ele lutou tanto, mas tanto pra tirar”. Leia de novo essa passagem. “Trepavam na parede.” As moças, durante o exorcismo, subiam pelas paredes da igreja. A camisa do padre ficava ensopada de suor, ele precisava trocar e continuar. A luta era física, mental, espiritual. E a igreja? Lotada. A comunidade inteira acompanhava, noite após noite, para ver o desfecho. Depois de sete noites, segundo Dona Emília, as irmãs foram libertadas. A mulher que subia em árvore Se você acha que a história anterior foi difícil de acreditar, espere por esta. Dona Augusta contava sobre uma mulher que, quando estava em crise, subia em árvores. “E depois, o homem levou embora a mulher. Ela tinha cinco filhos. Dizia que ela subia em árvore, parecia um macaco. Já pensou uma mulher subir em árvore? Pra ver que não tem juízo nenhum. Ele falou que tinha ainda cinco filhos em casa.” A mulher foi levada ao padre. Ele a exorcizou. Segundo o relato, ela melhorou. Mas o que era aquilo? Surto psicótico? Histeria? Transtorno dissociativo? Ou, como acreditava o povo, possessão demoníaca? Impossível saber com certeza. Mas uma coisa é certa: aquela família não tinha mais para onde ir. E padre Stefanello acolheu. Tentou ajudar. Fez o que estava ao seu alcance. O ritual: Como funcionava um exorcismo em Cascalho Dona Santa, uma das testemunhas descreveu detalhadamente como padre Stefanello conduzia os exorcismos: 1. A água benta “O crucifixo era grande, e ele dizia: ‘-Eu te bato com o crucifixo se você não vai embora dessa pessoa aí’.
