Documentos, inventários e relatos revelam como a fazenda símbolo da colonização europeia entrou em declínio e passou para a nova administração dos Levy
A história da Fazenda Ibicaba é uma das mais marcantes do interior paulista. Nascida como o grande experimento do senador Vergueiro para substituir o trabalho escravo por colonos europeus, a propriedade atravessou momentos de esperança, conflitos, prosperidade e declínio até chegar à venda para a família Levy, que assumiu uma fazenda já carregada de décadas de memória e tensão.

Tudo começa em 1846, quando foram registrados os primeiros grupos de imigrantes que chegaram para trabalhar em Ibicaba. As listas manuscritas conservadas no livro mostram os nomes de homens, mulheres e crianças que aceitaram cruzar o oceano em busca de uma vida que acreditavam ser mais justa. Eles vinham para o sistema de parceria criado por Vergueiro, que prometia moradia, uma área para plantar, participação nos lucros e a possibilidade de, com o tempo, construírem suas próprias oportunidades.
Os contratos de parceria reproduzidos no livro por meio de recortes de jornais e documentos deixavam claro que os colonos deveriam pagar sua viagem e adiantamentos com o próprio trabalho. Em troca, seriam parceiros da fazenda, e não empregados. No papel, era uma ideia moderna. Na prática, o sistema gerava uma relação de dependência: a administração definia preços, adiantamentos, prazos, juros e condições. A vida no campo revelava que a liberdade prometida era bem mais estreita do que parecia.
É nesse ponto que entra uma figura central citada no próprio livro: Thomas Davatz. Em “Memórias de um Colono no Brasil”, obra mencionada no livro, Davatz descreve com sinceridade as dificuldades enfrentadas pelos europeus que trabalharam em Ibicaba. Ele relata a frustração de colonos que chegavam cheios de esperança e acabavam presos a dívidas, atrasos e exigências que não conseguiam cumprir. Suas memórias revelam desgaste, desconfiança e um ambiente onde o sonho de parceria se transformava, muitas vezes, em sentimento de injustiça. O impacto de Davatz foi tão grande que suas denúncias ecoaram na Europa, levando governos a rever o envio de imigrantes ao Brasil. Para o livro da família Levy, essa referência é essencial para compreender o clima da época e o peso histórico que a fazenda carregava.

Com o passar das décadas, a situação econômica da fazenda se deteriorou. A prosperidade dos primeiros anos foi dando lugar a crises, especialmente entre 1857 e 1865, e o fim do século XIX encontrou Ibicaba em condições fragilizadas. Antes da venda, foi realizado um inventário completo da propriedade um documento detalhado que listou tudo o que ainda compunha o gigantesco patrimônio da fazenda.
Os registros mostram uma estrutura impressionante: uma sede com dezenas de cômodos, salas de visita, sala de bilhar, sala de jantar, quartos de família e hóspedes, administração própria, dependências de serviço e uma cozinha equipada. Ao redor dela, distribuíam-se casas de colonos, oficinas, ferraria, tulhas, paiol, cocheiras, depósitos, hospital, padaria e instalações destinadas ao beneficiamento do café. A fazenda funcionava como um organismo autossuficiente, com áreas de produção, apoio, moradia e serviços internos.
Entre os bens avaliados estavam móveis finos, mesas de madeira nobre, cadeiras austríacas, camas francesas, sofás, espelhos grandes, estantes, utensílios de metal, peças de mármore, relógios, luminárias, equipamentos agrícolas e animais de trabalho como bois, cavalos, burros e vacas. Também foram analisadas extensas porções de terras, compostas por cafezais novos e antigos, matas, pastagens, roças e áreas livres. A soma de todos esses bens ultrapassou 444:965$900, mais de 444 contos de réis, um valor que ilustra o tamanho e a importância econômica de Ibicaba, mesmo já em decadência.
As últimas páginas do bloco documental mostram o passo final: a propriedade foi oficialmente arrematada e transferida para a família Levy. A Carta de Arrematação confirma a mudança de mãos e encerra o ciclo Vergueiro após décadas de altos e baixos. A partir desse momento, a fazenda deixa de ser apenas o símbolo de um projeto pioneiro de colonização e passa a integrar a trajetória dos Levy uma família que, mais tarde, também se tornaria parte fundamental da história de Limeira, Cordeirópolis e região.
A venda da Fazenda Ibicaba não foi apenas um negócio imobiliário. Foi o fim de um capítulo decisivo da história paulista e o início de outro. Um capítulo marcado pela chegada dos primeiros imigrantes, pelos conflitos revelados por Davatz, pela força de um projeto que tentou reinventar o trabalho no campo e, finalmente, pela transição para uma nova gestão, que herdou uma fazenda grandiosa, complexa e cheia de memória.
Assim, Ibicaba mudou de mãos, mas nunca deixou de refletir as transformações do interior paulista da promessa de parceria à reorganização econômica conduzida por novas famílias proprietárias. E a família Levy, ao assumir a fazenda, tornou-se parte dessa história, abrindo caminho para um novo tempo em um dos territórios rurais mais emblemáticos do estado.
Fonte histórica
Este artigo foi baseado no livro “Os Levy” , editado pela Biblioteca Paulo Masuti Levy, uma obra do álbum da família Levy, do ano de 2023. O texto aqui apresentado é uma adaptação narrativa para o site Tá No Arquivo, mantendo os fatos históricos documentados.