Relíquias históricas preservam memórias do início do século XX
Nesta semana em que celebramos o Dia de Finados, voltamos nosso olhar para duas preciosidades históricas que guardam memórias fundamentais de Cordeirópolis: os livros de registros de sepultamentos dos cemitérios de Cascalho e de Cordeirópolis, datados de 1900.
Esses documentos centenários, revelam histórias surpreendentes sobre a população que viveu no município há mais de um século.

O registro mais notável: um africano de 130 anos
Entre os registros mais impressionantes está o sepultamento de um homem africano chamado Leandro, registrado em 2 de setembro de 1903 no livro do Cemitério de Cascalho. Segundo o documento, Leandro faleceu aos 130 anos de idade. Seus familiares constam como desconhecidos, e sua identificação no livro é simplesmente “africano”.
Este não é o único caso de longevidade extrema registrado nos livros. Uma análise cronológica revela outros sepultamentos notáveis:

Cronologia dos registros de longevidade
3 de janeiro de 1902 – O primeiro registro do livro de Cordeirópolis foi de uma criança, Maria da Conceição, com apenas 15 dias de vida. Este contraste entre o primeiro e os subsequentes registros ilustra a dura realidade da época: alta mortalidade infantil e, simultaneamente, casos de extrema longevidade.

29 de janeiro de 1902 – Victor, um africano de 120 anos. Naquela época, era comum que pessoas escravizadas ou recém-libertas tivessem apenas um nome, sem sobrenome.
20 de dezembro de 1902 – Pedro, registrado com 100 anos de idade.

2 de setembro de 1903 – Leandro, o africano do Cemitério de Cascalho, com 130 anos – o registro mais longevo encontrado.
4 de novembro de 1905 – Laurentino, com 120 anos de idade.

O contexto histórico
Para compreender esses registros, é fundamental considerar o momento histórico em que foram feitos. Em 1902, haviam transcorrido apenas 14 anos desde a abolição da escravatura no Brasil, decretada pela Lei Áurea em 1888. Isso significa que muitos dos africanos registrados nesses livros foram, muito provavelmente, pessoas que viveram grande parte de suas vidas sob o regime escravocrata.
As idades avançadas, especialmente os casos de 120 e 130 anos levantam questões importantes sobre a precisão dos registros. Especialistas apontam algumas possibilidades:

Imprecisão documental: Na época, muitos nascimentos não eram registrados oficialmente, especialmente de pessoas escravizadas. Não havia certidões de nascimento para essa população.
Desconhecimento da idade real: Muitos africanos trazidos ao Brasil durante o período escravista não sabiam sua idade exata, pois não havia registro de seu nascimento.
Estimativas aproximadas: As idades podem ter sido estimadas com base na aparência física, relatos orais ou memórias imprecisas, resultando em números aproximados ou exagerados.
Aspecto cultural: Em algumas culturas africanas, a longevidade era (e ainda é) associada à sabedoria e respeito, podendo haver uma tendência a superestimar a idade dos mais velhos.
Patrimônio histórico ameaçado
Apesar de sua importância histórica inestimável, esses livros encontram-se em estado delicado de conservação. Com aproximadamente 120 anos de existência, o papel deteriorado e a tinta desbotada ameaçam fazer desaparecer essas histórias para sempre.

A restauração desses documentos é urgente e necessária. Eles representam não apenas registros administrativos, mas testemunhos vivos da formação da sociedade cordeiropolense, especialmente da presença e contribuição da população africana e afrodescendente na construção do município.
Memória e identidade
Esses registros transcendem os números e datas. Cada nome inscrito nesses livros centenários representa uma vida, uma história, uma trajetória. Victor, Pedro, Leandro e Laurentino não são apenas estatísticas, são pessoas que vivenciaram a transição do Brasil escravocrata para o Brasil pós-abolição, que trabalharam, construíram famílias e contribuíram para a formação de Cordeirópolis.

Neste Dia de Finados, ao honrarmos a memória dos que partiram, é essencial que também nos comprometamos a preservar os registros de suas existências. Os livros dos cemitérios de Cascalho e Cordeirópolis são páginas vivas da história local, e sua preservação é um dever de todos nós.
Que estas histórias centenárias nos inspirem a valorizar nossa memória coletiva e a reconhecer a importância de cada vida que ajudou a construir a Cordeirópolis que conhecemos hoje.