O padre que veio da Itália e mudou Cascalho para sempre

1911. Um jovem padre desembarca na pequena colônia italiana de Cascalho. Ele não sabe ainda, mas está prestes a se tornar uma lenda.

O trem apita ao longe. A poeira vermelha sobe da estrada de terra. Pe. Luis Stefanello, missionário escalabriano recém-chegado, olha ao redor e vê o que esperava encontrar: casas simples de imigrantes italianos, crianças descalças correndo entre galinhas, mulheres com lenços na cabeça carregando água e  homens curvados sobre a terra que não era mais aquela do Vêneto.

Eles haviam deixado a Itália em busca de vida melhor. Encontraram trabalho duro, saudade profunda e uma solidão que só a fé conseguia preencher.

E ali estava ele,  um padre que falava a língua deles, conhecia suas dores, entendia seus medos.

Ninguém imaginava que aquele jovem sacerdote se tornaria, nas décadas seguintes, uma figura tão poderosa que pessoas viriam de Minas Gerais, Paraná e até Goiás só para vê-lo. Ninguém sabia que seu nome seria sussurrado com respeito  e um pouco de medo, por gerações.

Conheça agora,  a história de Pe. Luis Stefanello, o padre que mudou Cascalho para sempre.

Foto reproduzida IA, quando padre Stefanello chegou a comunidade com aproximadamente 30 anos de idade

A colônia italiana que precisava de um milagre

Para entender quem foi Pe. Stefanello, é preciso primeiro entender onde ele chegou.

Cascalho, hoje parte de Cordeirópolis  era, no início do século XX, um núcleo de imigrantes italianos vindos principalmente do Vêneto. Eles haviam desembarcado no Brasil fugindo da crise econômica de 1846 que devastou a Europa.

A promessa era simples: terra fértil, trabalho e chance de recomeçar.

A realidade foi bem mais dura.

Chegaram em 1904 e se instalaram nas proximidades da Fazenda Iracema, onde cada família recebia um pequeno pedaço de terra como propriedade. Era uma das primeiras experiências de reforma agrária no Estado de São Paulo, uma tentativa corajosa de substituir o trabalho escravo pelo trabalho livre.

Mas a adaptação não foi fácil.

O clima era diferente. A língua era outra. Os costumes, estranhos. A saudade, insuportável. Muitos adoeceram. Alguns desistiram e voltaram. Outros morreram sem nunca mais ver a terra natal.

E foi nesse contexto que a fé se tornou o único porto seguro.

 Você sabia?

Os Missionários Escalabrinianos foram fundados em 1887 pelo Beato João Batista Scalabrini especificamente para cuidar dos imigrantes italianos espalhados pelo mundo. Seu objetivo não era apenas religioso  era social. Queriam “manter viva a fé católica no coração dos compatriotas emigrados e, na medida do possível, buscar o seu bem-estar moral, social e econômico.”

Pe. Stefanello fazia parte dessa missão.

O padre que falava a língua do povo

Quando Pe. Luis Stefanello chegou em 1911, a colônia respirou aliviada.

Finalmente, alguém que os entendia. Não apenas a língua italiana, mas a alma italiana.

Ele conhecia as festas do Vêneto. Sabia das tradições. Entendia o peso da saudade. E, principalmente, respeitava as crenças populares que os imigrantes traziam na bagagem: o medo do malocchio (mau-olhado), a crença em espíritos malignos, a necessidade de benzer, rezar, proteger.

Stefanello não era apenas um padre que rezava missa. Era um pastor, no sentido mais profundo da palavra. Visitava as casas. Consolava os aflitos. Benzia os doentes. Estava presente nos nascimentos, nos casamentos, nos enterros.

E logo, algo começou a acontecer.

As pessoas começaram a notar que ele tinha um carisma particular.

Dona Rosa, uma das moradoras mais antigas, lembrava décadas depois:

“Ele ficou aqui 42 anos, o padre Luis. E depois, ele fez o meu casamento também.”

Não era só ela. Famílias inteiras passaram a vida inteira sob os cuidados espirituais de Stefanello. Ele batizou os filhos, casou os netos, enterrou os avós.

Mas havia algo mais. Algo que fazia dele diferente de outros padres.

“Um padre cheio de poder”

A fama começou devagar, quase por acaso.

Uma mulher que estava doente pediu a benção. Melhorou. Um homem atormentado buscou ajuda. Encontrou paz. Uma criança com febre alta foi benzida. A febre baixou.

Coincidências? Fé? Milagre?

Para o povo de Cascalho, não importava. O que importava era que Stefanello curava.

E a notícia se espalhou.

Primeiro para Cordeirópolis. Depois para Limeira. Logo, para cidades vizinhas. E então, para estados inteiros.

“Como vinha gente”, diziam os moradores. “Vinha bastante gente do Paraná para tratar exorcismo”, contava dona Rosa, com aquele jeito simples de quem está falando de algo absolutamente normal.

Exorcismo.

A palavra assustava. Mas para os italianos de Cascalho  e para tantos outros que vinham de longe, era parte da realidade. O mal existia. E existia alguém que podia enfrentá-lo.

Foto reproduzida por IA baseada na foito real

Pe. Stefanello.

O contexto cultural: Quando o diabo era real

Para compreender a dimensão do que acontecia em Cascalho, é preciso voltar no tempo e entender como aquelas pessoas viam o mundo.

No interior do Brasil dos anos 1910-1950, especialmente entre imigrantes italianos, a linha entre o natural e o sobrenatural era muito tênue.

Doenças inexplicáveis? Podia ser o diabo. Comportamento estranho? Espírito maligno. Azar persistente? Mau-olhado.

Não era ignorância. Era cosmovisão,  uma forma de interpretar a realidade onde Deus, santos, anjos e demônios coexistiam no cotidiano. Onde uma benção podia mudar o rumo de um dia. Onde um crucifixo na parede protegia a casa.

E nesse universo simbólico, o padre era o mediador entre Deus e os homens.

Stefanello entendia isso. Não desprezava as crenças populares,  trabalhava com elas. Benzia com água benta. Rezava o terço. Usava o crucifixo. Expulsava o mal.

E o povo reconhecia nele uma autoridade espiritual real.

A vida religiosa em Cascalho

A fé não era algo abstrato para os italianos de Cascalho. Era vida vivida.

Aos domingos, a igreja ficava lotada. Famílias inteiras caminhavam quilômetros para assistir à missa. As crianças eram batizadas logo após o nascimento. Os casamentos eram grandes celebrações comunitárias. Os mortos eram velados com rezas que duravam noites inteiras.

E havia as festas.

Festa de Nossa Senhora da Assunção. Festa de Santo Antônio. Festa de São Sebastião. Cada uma delas um momento de encontro, de pertencimento, de reafirmação da identidade italiana em terra brasileira.

Pe. Stefanello estava no centro de tudo isso.

Ele não era apenas o padre que rezava a missa. Era o organizador das festas. O conselheiro nos momentos difíceis. O porta-voz da comunidade. A figura que dava continuidade entre o Vêneto que haviam deixado e o Brasil que agora chamavam de lar.

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Quando a fama ultrapassou as fronteiras

Com o passar dos anos, algo extraordinário começou a acontecer.

Cascalho, uma pacata colônia italiana perdida no interior de São Paulo, virou destino de romaria.

Aos finais de semana, especialmente aos domingos, chegavam pessoas de toda parte.

“Vinham de longe. Até do Paraná.”

“Vinham de caminhão, às vezes de carro.”

“Chegava romeiro dentro de um caminhão, assim, acorrentado.”

Acorrentado.

A imagem é chocante, mas real. Pessoas que, segundo a crença da época, estavam possuídas por espíritos malignos eram trazidas por suas famílias, muitas vezes amarradas, para que Pe. Stefanello as libertasse.

O movimento era tão grande que gerou até uma pequena economia local:

  • O Hotel Viaduto recebia os peregrinos que vinham de longe
  • O Bar do Rosolem preparava almoços para as famílias
  • Havia até carros de praça fazendo o trajeto Cordeirópolis-Cascalho só para levar gente até o padre.
Padre Stefanello construiu a igreja. Foto IA

“Em Cordeirópolis a Cascalho: ‘em Cordeirópolis tinha os automóveis, que tinha aquele Rocha e o Romano. Eles viviam só de trazer gente aqui. Traziam aqui, em Cascalho, pro padre dar a benção'”,  relatava Sr. Guilherme.

Cascalho tinha virado, involuntariamente, um centro de peregrinação religiosa.

E no centro de tudo estava ele: um padre que atendia a todos, sem distinção, sem cobrar, movido apenas pela fé e pela compaixão.

O homem por trás da batina

Quem era, afinal, Pe. Luis Stefanello?

Os relatos pintam o retrato de um homem fascinante pelo demônio,  não no sentido de atração, mas de confronto. Ele acreditava, profundamente, que o mal existia de forma concreta. E acreditava que era sua missão combatê-lo.

Mas havia mais nele do que apenas o exorcista.

Stefanello era trabalhador incansável. Atendia de madrugada, quando necessário. Não recusava ninguém. Não cobrava nada. Sua vida era dedicada integralmente ao povo que serviu por 42 anos.

Stefanello era corajoso. Enfrentar o que ele acreditava ser forças demoníacas exigia não apenas fé, mas coragem física. Os rituais eram desgastantes. Alguns duravam horas. Outros, dias.

Stefanello era humano. Cansava. Sofria. Duvidava. Numa carta enviada ao seu superior em 1916, ele pedia conselhos sobre como lidar com casos de possessão, reconhecendo suas limitações e buscando orientação.

E acima de tudo, Stefanello amava aquele povo.

O legado que começou em 1911

Quando Pe. Stefanello desembarcou em Cascalho naquele ano de 1911, ele não imaginava o impacto que teria.

Não sabia que 42 anos depois, quando morresse em 1953, haveria luto generalizado. Não imaginava que, décadas após sua morte, as pessoas ainda diriam: “Ah, você é daquele lugar que tinha o padre exorcista”.

Não previa que, em 2003, durante as comemorações dos 110 anos da chegada dos imigrantes italianos, as famílias ainda estariam contando suas histórias. Ainda estariam preservando sua memória.

Mas talvez ele soubesse de algo mais importante: que estava fazendo diferença.

Que cada benção dada aliviava um sofrimento. Que cada missa celebrada fortalecia uma comunidade. Que cada exorcismo realizado fosse o que fosse que estava acontecendo ali, dava esperança a quem não tinha mais nenhuma.

A pergunta que fica no ar

Ao longo de quatro décadas, Pe. Stefanello atendeu milhares de pessoas.

Curou doentes. Consolou aflitos. Expulsou demônios ou o que quer que fosse aquilo que atormentava tanta gente.

Mas o que realmente acontecia naqueles encontros?

Eram realmente possessões demoníacas? Ou doenças que a medicina da época não sabia tratar? Eram crises epiléticas? Transtornos mentais? Histeria coletiva?

Ou seria tudo isso irrelevante diante de uma verdade maior: que Pe. Stefanello, com sua fé inabalável e sua compaixão infinita, conseguia oferecer algo que nenhum médico da época poderia dar:  alívio, esperança e a sensação de que alguém se importava?

Foto reporoduzida por IA a partir da foto real

O que vem a seguir

Esta é apenas a primeira parte da história de Pe. Luis Stefanello.

Conhecemos o homem. Conhecemos o contexto. Conhecemos a comunidade que ele serviu e a fama que construiu.

Mas ainda faltam as histórias que transformaram o missionário italiano no “Padre Exorcista de Cascalho”.

Os casos que ele enfrentou. Os rituais que realizou. As pessoas que ele libertou  ou tentou liberar. As noites de luta espiritual. O medo e a fé. O inexplicável e o humano.

No próximo artigo, vamos mergulhar nos relatos que até hoje fazem os mais velhos de Cordeirópolis baixarem a voz e olharem para os lados antes de contar.

Histórias de:

  • O homem que precisava de benção às 1h da madrugada
  • As irmãs que tinham 7 espíritos cada uma
  • A mulher que subia em árvores
  • O jovem que teve crises por anos
  • E tantas outras que nunca foram esquecidas

Está preparado para conhecer o lado mais sombrio  e mais fascinante da história de Cascalho?

 Fonte Histórica

Este artigo foi baseado no estudo acadêmico “A memória de um padre exorcista: relatos da colônia de Cascalho”, de Marcio Luiz Fernandes e Marina Massimi, publicado na revista Memorandum (2004). A pesquisa utilizou entrevistas com moradores antigos de Cascalho (atual Cordeirópolis) e documentos da Paróquia de Nossa Senhora da Assunção e do Arquivo Geral da Congregação Escalabriana em Roma. O texto aqui apresentado é uma adaptação narrativa do blog Tá no Arquivo, mantendo a fidelidade aos fatos históricos documentados. As fotos foram reproduzidas utilizando inteligência artificial com base nas poucas fotos existentes em preto e branco.

Casa de Cultura Cascalho

A casa de Cultura de Cascalho traz diversos materiais relacionados ao padre Luiz Stefanello e a imigração italiana. A casa está localizada na rodovia Constante Peruche (em frente a Paróquia Nossa Senhora Assunção) e atende nos seguintes horários:

  • Quarta e Quinta: das 9h às 12h e das 13h às 17h
  • Sexta-feira: das 10h às 12h e das 13h às 17h
  • Sábado e Domingo: das 8h às 12h

 E você?

Sua família tem histórias de fé que atravessaram gerações? Conhece alguém que foi benzido por Pe. Stefanelo? Ou tem memórias de outros padres ou benzedeiras que marcaram sua região?

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No próximo artigo: “Os Exorcismos de Cascalho: As Histórias que Ninguém Esqueceu” — Os casos que transformaram Pe. Stefanello em lenda.

Sua família tem histórias de fé que atravessaram gerações?

Conheceu alguém que foi benzido por Pe. Stefanello? Tem memórias de exorcismos, benzedeiras, ou outros padres que marcaram sua região?

Padre Stefanello sempre presente nas ações da Paróquia

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