Tá no Arquivo
Com informações do historiador esportivo José Antonio Milani, o Gancho
Poucos sabem, mas Santa Gertrudes já teve um time de futebol que fazia a cidade parar. O Santa Gertrudes F.C. não era apenas um clube, era o coração pulsante de uma comunidade que crescia ao redor da estação ferroviária, no que então se chamava Distrito da Paz de Santa Gertrudes.

O nascimento de uma paixão
Segundo relata o historiador esportivo José Antonio Milani, conhecido carinhosamente como “o Gancho”, tudo começou na década de 1930. Um grupo de moradores apaixonados pelo futebol, liderados por Santo Negro, resolveu montar uma equipe. O campo foi construído entre a estação ferroviária e a estrada velha, hoje conhecida como Rodovia Constante Peruchi.
“Era um vilarejo crescendo ao redor da estação”, conta Gancho. “E o futebol chegou junto com o desenvolvimento da região.”
1934: O retrato de uma era dourada
A fotografia de 1º de janeiro de 1934 é um dos documentos mais preciosos da história esportiva local. Nela, vemos os jogadores do Santa Gertrudes F.C. com suas camisas listradas, sérios e orgulhosos. Entre os atletas daquela época memorável estavam Alfredo Carandina, Claro Miranda, Armando Carandina, Zé Neves, Tufi, Henrique Heques, Joane Sella, Paulino Vaspinto, Sidiney Toppa, Bastião Férias, Luizinho Grall, Henrique Pagnocca e Nenê Pagnocca.

Gancho teve acesso a esse material histórico graças à generosidade de três ex-craques: Alfredo Carandina, Antonio Vitte e Edi Valdanha, que abriram seus lares e mostraram acervos de fotos que preservam aqueles tempos.
A rivalidade que incendiava a cidade
O grande rival era o E.C. Flamengo. Os jogos entre os dois times paralisavam Santa Gertrudes. O Clube do Inaugu, como também era conhecido o adversário, foi inaugurado em 1934 e manteve suas atividades até 1955.
No elenco do Santa Gertrudes, além dos já citados, brilhavam nomes como Santim Giacomine, Ciro Rocha, Michel Lemos, Antonio Filler, Luiz Paraluppa, Antonio Doimo, Fernando Beraldo e Alcides Soave, que comandava o time como técnico.
O Bicampeonato que entrou para a história
O auge veio em 1952 e 1953, quando o Santa Gertrudes conquistou o bicampeonato Varzeano. A conquista marcou época e encheu de orgulho toda a comunidade. Um dos jogos mais lembrados foi a vitória sobre a Vila Maria de São Paulo.

Gancho guarda uma história curiosa sobre a final de 1953: “O Edi não participou do antipenúltimo jogo porque cortou o dedo. Como já eram considerados bi-campeões, foram jogar apenas para cumprir tabela. No lugar dele, veio o Luiz Portugues, do Palmeiras.”
O estádio de telhas e outras curiosidades
Onde hoje funciona o Auto Posto Santa Gertrudes, ficava o campo do time. Uma peculiaridade chamava atenção: o muro era feito de telhas cedidas pelos ceramistas da região. “Tinha um risco considerável”, relembra Gancho com bom humor. “Se saísse alguma briga, era ‘telhadaço’ por todos os lados.”
O time tinha suas madrinhas, que se vestiam de branco e levavam flores para os craques quando saíam vitoriosos. As taças de campeonatos eram doadas, sendo as mais marcantes as oferecidas por Maximiliano Martins e pela Panificadora Paulista.
Francesco e o milagre da virada
Uma das histórias mais incríveis narradas por Gancho envolve o jogador Francesco, que havia treinado no Velo Clube e no Ypê Palmeiras antes de chegar ao Santa Gertrudes. Em uma partida contra o Ferraz, considerado o pior time do campeonato, o Santa Gertrudes perdia de 3 a 0 no primeiro tempo.
Francesco entrou para guardar a meta no segundo tempo, mesmo com o dedo da mão quebrado. O resultado? Vitória de 4 a 3 na virada, em um jogo que entrou para o folclore local.

O contrato mais inusitado do futebol santagertrudense
O historiador Gancho registra um caso peculiar envolvendo o jogador Edi. Seu primeiro contrato foi fechado em troca de uma égua chamada Libuna, propriedade de Atilio Pascon. “Edi queria comprá-la para fazer trabalhos extras, além de usar nas horas de folga da Central Elétrica”, explica Gancho.
O time pagava 200 mil réis na época e a água custava 150 mil réis. “Fui contratado por uma égua”, dizia Edi com orgulho dessa história inusitada.
A união que derrubaria cadeias
Uma passagem que demonstra a força da união entre jogadores e torcedores aconteceu em Corumbataí. O Getulinho foi preso após um jogo, e a torcida que havia acompanhado o time em um ônibus e cinco caminhões, não aceitou. Foram até a cadeia exigir sua soltura com um ultimato: “Ou o soltavam ou derrubavam tudo.”
A pressão funcionou, e Getulinho foi liberado. Para Gancho, esse episódio simboliza perfeitamente o espírito daquele tempo.
Antonio Rosa: O mestre
Impossível falar da história do futebol em Santa Gertrudes sem mencionar Antonio Rosa. Vindo de Minas Gerais, ele residiu na Cerâmica Retiro entre 1945 e 1950. Calmo, educado e gentil, Rosa foi treinador do Santa Gertrudes F.C. e formou uma legião de amigos na cidade.
“Sabia como cativar os craques da época: Jaques, Edy, Cocão, Jacozinho, Baninho, entre outros tantos”, recorda Gancho. “Com ele, nossa cidade viveu uma das suas melhores épocas em termos de futebol, bom futebol mesmo.”
O historiador enfatiza: “Antonio Rosa, já falecido, merece ser um nome que a cidade guardou.”
As pioneiras do futebol feminino
Décadas antes do futebol feminino se popularizar no Brasil, Santa Gertrudes já tinha algo revolucionário: uma torcida uniformizada feminina. Na década de 1950, mulheres como Cacilda Bononi, Nair Sabione, Alice Taioque, Ceci Richa, Nilva Giacomini, Efigênia Rosa, Marina Lenci, Iolanda Silva e Cida Lenci quebravam barreiras.

“A participação das mulheres nas atividades consideradas masculinas já era o início de sua emancipação”, analisa Gancho, destacando o pioneirismo dessas mulheres que desafiaram os padrões da época.
Os craques que fizeram história
Entre os nomes que brilharam nos campos de Santa Gertrudes, Gancho destaca: Jacques Ribeirão, Edi Valdanha, Eduardo Martins, Mário dos Santos, Rovail Doimo, Alfredo Carandina, Pedrinho Pascon, Toninho Vitte, Dega, Nelson Pascon, Antonio (Tolé) Giovani, Chico Buoro, Orlando Giovani, Augusto Buoro, Alcides (do Conde), Armando Carandina e Marino (do Conde).
De outras regiões vieram reforços de peso: Reginato, Valdomar, Jordão, Gernignani, Milton Jorge, Joãozinho, Daniel, Berá, Laerte, Jordão, Maniero, Oscarzinho, Crioulo, Luiz e Almeida, Moreno, Indaiá, Archimedes e Cláudio.
O legado que permanece
José Antonio Milani, o Gancho, dedicou anos de pesquisa para preservar essa história. Conversou com ex-jogadores, reuniu fotografias, documentou relatos. Seu trabalho como historiador esportivo garantiu que as memórias do Santa Gertrudes F.C. não se perdessem no tempo.
Hoje, poucos conhecem essa história. O campo virou posto de gasolina, os jogadores se foram, mas o legado permanece nos arquivos cuidadosamente preservados e nas memórias daqueles que viveram ou ouviram falar dessa época de ouro.
Santa Gertrudes teve seu momento de glória no futebol. E graças ao trabalho de Gancho, essa história não será esquecida.
Esta é uma matéria do projeto Tá no Arquivo, que resgata histórias esquecidas através de documentos históricos e relatos de pesquisadores locais.