Os imigrantes que construíram Iracemápolis: italianos, alemães e portugueses

A história de Iracemápolis não começa em Iracemápolis. Ela começa na Itália, em Portugal, na Alemanha e na Suíça.

Imagine deixar tudo para trás. Sua casa, sua língua, seus mortos enterrados na terra dos seus antepassados. Agora imagine fazer isso em 1850, embarcando em um navio superlotado, dormindo em camas-treliche na terceira classe, sem saber se chegaria vivo do outro lado do oceano.

Era isso que os imigrantes enfrentavam quando partiam para o Brasil. E muitos deles, centenas, milhares  escolheram as terras que hoje conhecemos como Iracemápolis para recomeçar a vida.

Vista aérea da cidade – esquina da Praça da Matriz com a Rua Pedro Chinellato. Ao fundo está o campo de futebol arborizado com eucaliptos, onde hoje é a EE “Cesarino Borba”. Foto reporuzida com uso de IA

A viagem que mudou tudo

Sessenta dias. Às vezes setenta e cinco. Era o tempo que um navio a vela levava para cruzar o Atlântico entre a Europa e o Porto de Santos. Depois, com a invenção do navio a vapor, o trajeto caiu para trinta dias, mas isso não tornava a viagem menos brutal.

Na terceira classe, famílias inteiras se apertavam em beliches apertados. A comida era escassa. A cólera atacava sem avisar. Quando alguém morria; e muitos morriam, o corpo era simplesmente atirado ao mar.

Por que alguém se sujeitaria a isso? A resposta é simples: fome.

A crise econômica de 1846 devastou a Europa. Não havia trabalho. Os salários despencaram. Famílias inteiras passavam necessidade. O Brasil, com suas terras férteis e promessas de trabalho, parecia a salvação.

Os portugueses: Os primeiros a chegar

Década de 1840. Antes mesmo dos italianos e alemães, foram os portugueses que começaram a chegar à região do Morro Azul.

Vinham sob o comando do Senador Vergueiro, um visionário que acreditava nas vantagens de substituir o trabalho escravo pelo trabalho livre. Não era mais escravidão, mas também não era liberdade plena, era um sistema de parceria, onde os imigrantes trabalhavam sob controle rígido.

Alguns conseguiram prosperar. Com economia e trabalho duro, juntavam até 700 mil réis, uma fortuna para a época. Com esse dinheiro, compravam suas próprias terras.

Sobrenomes que chegaram nessa época e fincaram raízes: Ferreira das Neves, Ferreira dos Santos, Pinto Ribeiro, Mesquita, Fonseca, Cunha, Silva, Vieira, Gomes, Nunes, Rodrigues, Carvalho Mendonça, Queiroz, Pereira, Lopes.

Se você tem um desses sobrenomes, suas raízes em Iracemápolis são profundas.

Alemães e Suíços: A disciplina que veio dos Alpes

Entre 1852 e 1872, uma nova leva de imigrantes começou a chegar: alemães e suíços.

Eles se espalharam pelas fazendas Ibicaba, Angélica, Santa Gertrudes, São Jerônimo, Morro Azul e Tatu. Trouxeram consigo não apenas força de trabalho, mas algo mais valioso: conhecimento técnico, disciplina e métodos agrícolas avançados.

Sobrenomes que moldaram a região: Bush, Kloss, Scherrer, Blumer, Schneider, Levy, Roland, Hartung, Killer, Sass, Meyer, Küll, Müller, Wenzel, Asbahr, Dibbern, Hardt.

Foram eles que introduziram técnicas de plantio mais eficientes e ajudaram a modernizar a produção agrícola da região. Muitos prosperaram e se tornaram proprietários de terras.

Os italianos: A maior onda migratória

Mas foi entre 1887 e 1897 que a grande transformação aconteceu.

Nesse período, cerca de 790 mil italianos desembarcaram no Brasil. E uma parte significativa deles escolheu o interior de São Paulo, incluindo as terras que se tornariam Iracemápolis.

Eles vinham do norte da Itália, principalmente do Vêneto. Fugiam da miséria, da falta de perspectiva, da fome. Aqui, encontraram sol escaldante, terra vermelha e trabalho de sol a sol nas fazendas de café e cana-de-açúcar.

Mas encontraram também algo que não tinham na Itália: oportunidade.

O legado italiano que vive até hoje

Olhe ao seu redor em Iracemápolis. Quantos sobrenomes italianos você reconhece?

A lista é extensa: Batiston, Buzolin, Bottion, Bertanha, Batistela, Bonin, Boscheiro, Bortolan, Brugnaro, Cavinatto, Chinellato, De Gaspari, Demarchi, Ducatti, Ferrari, Furlan, Gazetta, Giacon, Giusti, Guarino, Lucato, Magaldi, Marrafon, Massari, Olivatto, Olivieri, Ometto, Paggiaro, Parronchi, Pazelli, Pecin, Picinini, Pilon, Pincelli, Polatto, Pompéo, Prada, Zambuzi, Zaros.

São nomes que viraram ruas, escolas, comércios. São famílias que construíram a cidade tijolo por tijolo.

A comida que nos une

Os imigrantes trouxeram algo mais precioso que ouro: suas receitas.

Aos poucos, a culinária europeia se misturou aos costumes brasileiros de subsistência, arroz, feijão, mandioca, milho. Embora muitos italianos rejeitassem o feijão no início, acabaram se adaptando.

Banner Promoção

Receitas que atravessaram o oceano

Rabanadas: Fatias de pão amanhecido banhadas em mistura de ovos batidos, leite, vinho e açúcar, fritas e polvilhadas com canela e noz-moscada. Até hoje um clássico das festas de fim de ano.

Crüstles: Frituras com massa de pastel, crocantes, polvilhadas com canela e açúcar. Pura nostalgia em forma de doce.

Macrum: Bolinhos de massa de trigo com gergelim e erva-doce, servidos em calda grossa de água de flor-de-laranjeira. Uma receita que poucos ainda sabem fazer.

Pão-de-ló gigante: Alguns chegavam a pesar 600 gramas! Feitos em formas grandes, eram o orgulho das festas.

Polenta: Ah, a polenta! Com frango, com linguiça, com molho… Até hoje é sinônimo de família reunida à mesa.

Polenta com serralha: Esta era mais rústica, a serralha era colhida nas plantações de café. Uma receita de quem sabia tirar alimento até do mato.

E os embutidos? Linguiças, salames, mortadelas caseiras. Cada família tinha sua receita secreta, passada de geração em geração.

O jogo que veio na bagagem

Os italianos trouxeram também o jogo de bocha.

No início do século XX, já havia campos rústicos em Iracemápolis, um no próprio povoado e outro no Bairro do Marrafon. Não tinham os requintes da cidade grande, mas cumpriam seu papel: reunir os homens aos domingos para jogar, conversar e matar a saudade da terra natal.

De imigrantes a construtores de uma cidade

Muitos dos que chegaram não passaram de trabalhadores rurais a vida toda. Mas outros — através de muito trabalho, economia e determinação, saíram da roça e se tornaram comerciantes, fazendeiros, industriais.

A família Ometto é o exemplo mais emblemático. Chegaram em 1918, ano de forte geada que destruiu cafezais inteiros. Compraram a Fazenda Aparecida (antiga Fazenda Angélica) e, em 1932, fundaram a Usina Boa Vista. Quatro anos depois, criaram a Usina Iracema.

Geraram empregos. Trouxeram energia elétrica. Ajudaram a pavimentar ruas. Construíram ambulatórios. Financiaram festas. Tornaram-se parte indissociável da história da cidade.

Mas eles não foram os únicos. Dezenas de famílias italianas, alemães e portuguesas prosperaram e moldaram Iracemápolis.

A força está no sangue misturado

O que faz de Iracemápolis o que ela é hoje não é apenas a geografia, a cana-de-açúcar ou a indústria.

É o sangue misturado de portugueses que chegaram em 1840, de alemães e suíços que trouxeram disciplina nos anos 1850, de italianos que chegaram aos milhares em 1890, de negros libertos que fundaram o primeiro povoado.

É a rabanada da Nonna no Natal. É a bocha jogada no domingo. É o sotaque que ainda se escuta nos mais velhos. É o sobrenome que carrega histórias.

Fonte histórica

Este artigo foi baseado no livro “Iracemápolis: Fatos e Retratos” (2008), do professor José Zanardo, uma obra resultado de três anos de pesquisas dedicadas ao resgate da memória histórica da cidade. O texto aqui apresentado é uma adaptação narrativa do blog Tá No Arquivo, mantendo a fidelidade aos fatos históricos documentados

E a sua história?

Sua família veio de onde? De qual navio? Por qual porto? Quem foi o primeiro a pisar nessa terra vermelha?

Se você tem sobrenome italiano, alemão ou português, sua história começa muito antes de você nascer, começa em um navio atravessando o Atlântico, em um porto desconhecido, em uma fazenda de cana onde seus bisavós trabalharam de sol a sol.

Compartilhe a história da sua família nos comentários. Quantas gerações moram em Iracemápolis? Alguém ainda tem fotos antigas? Receitas da Nonna guardadas em cadernos amarelados?

Essas histórias merecem ser contadas. Merecem ser lembradas.

Próximo artigo da série: “Dona Margarida Macota: A Parteira que Trouxe Iracemápolis ao Mundo”  A mulher que, entre 1920 e 1960, foi responsável pelo nascimento de boa parte da população da cidade.

Tá No Arquivo – Desenterrando histórias que merecem ser contadas