Elhiu Root, São Bento e Loreto: As estações que receberam nomes ilustres

Quando diplomatas, santos e compositores batizaram paradas no interior paulista

Nem todas as estações ferroviárias nasciam com nomes óbvios. Enquanto algumas herdavam denominações de fazendas, córregos ou capelas locais, outras recebiam batismos que contavam histórias bem mais complexas  histórias que envolviam diplomacia internacional, padroeiros religiosos e até a criação de uma das obras musicais mais icônicas do Brasil. No Ramal de Descalvado, três estações se destacavam por carregar nomes que transcendiam a geografia local: Elhiu Root, São Bento e Loreto.

Cada uma dessas estações guardava narrativas que revelavam como a ferrovia não era apenas infraestrutura de transporte, mas também palco de encontros culturais, políticas de Estado e inspiração artística. Juntas, elas demonstravam que os trilhos paulistas conectavam o interior não apenas às capitais brasileiras, mas ao mundo.

Elhiu Root: Quando um secretário de estado americano virou estação

O nome mais inusitado do ramal era, sem dúvida, Elhiu Root. Para quem não conhecia a história, soava como um mistério linguístico seria corruptela de algum termo tupi? Homenagem a algum fazendeiro esquecido? A verdade era ainda mais surpreendente: tratava-se de uma homenagem ao secretário de Estado dos Estados Unidos que visitou o Brasil em 1906.

Elihu Root (a grafia original, ligeiramente diferente) foi uma figura-chave da diplomacia americana no início do século XX. Advogado brilhante, Secretário de Guerra sob William McKinley e Theodore Roosevelt, e posteriormente Secretário de Estado, Root receberia o Prêmio Nobel da Paz em 1912 por seu trabalho na arbitragem internacional e promoção da paz hemisférica.

Elhiu Root de terno claro na estação de Cordeiros (Cordeirópolis). Ao seu lado, direito, o então presidente da companhia paulista de estradas de ferro conselheiro Antônio Prado. Foto do arquivo do estado de são Paulo

Sua visita ao Brasil, em julho de 1906, foi acontecimento de enorme importância diplomática. Root foi o primeiro Secretário de Estado americano a visitar a América do Sul, em uma turnê que incluiu Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. O objetivo era claro: fortalecer relações pan-americanas e consolidar a influência dos Estados Unidos no continente.

No Brasil, Root foi recebido com honras de chefe de Estado. Discursou no Congresso Nacional, reuniu-se com o presidente Rodrigues Alves, participou de jantares oficiais no Palácio do Catete. Sua passagem pelo país foi amplamente coberta pela imprensa, que exaltava o “estreitamento dos laços de amizade entre as duas grandes repúblicas americanas”.

Mas o que levou uma pequena estação no interior paulista a receber seu nome?

Segundo consta relatos da época: foi uma decisão política e econômica ao mesmo tempo, já que a Companhia Paulista tinha fortes conexões com capitais estrangeiros, especialmente ingleses e americanos. Homenagear Root era uma forma de sinalizar aos investidores internacionais que o Brasil  e particularmente São Paulo  estava aberto aos negócios, era moderno, integrado ao mundo civilizado. A estação foi inaugurada poucos meses após a visita de Root, em cerimônia que contou com autoridades estaduais e representantes da colônia americana em São Paulo. Jornais da época noticiaram o evento como “mais um testemunho da cordialidade que une as nações irmãs do continente”.

A arquitetura da estação Elhiu Root seguia o padrão de estações médias da Companhia Paulista: prédio em alvenaria de tijolos, telhado de quatro águas com telhas francesas, plataforma coberta. Nada de excepcional, exceto por uma placa de bronze  instalada na parede principal  que explicava a origem do nome e trazia um breve perfil biográfico de Root em português e inglês.

Cena do filme Sinhá Moça 1953, onde aparece a estação ‘’ARARUNA’’, que dizem ser Elhiu Root, porém vemos claramente que não. Veja que o trilho é uma espécie de ‘’bitola mista’’, nunca havendo isso no ramal! E desde a estrutura da estação, até o modelo da locomotiva, não procede com Elhiu Root e a Companhia Paulista.

Descendentes de ferroviários contam que aquela placa era motivo de orgulho local. “As pessoas gostavam de mostrar para visitantes, de explicar quem era aquele americano. Dava um ar de importância, de cosmopolitismo. Era como se Elhiu Root tivesse colocado aquele cantinho do interior paulista no mapa do mundo.”, disse o autor do livro.

A estação funcionou regularmente por décadas, servindo fazendas de café e, posteriormente, de cana-de-açúcar. Com o declínio ferroviário, foi desativada nos anos 1970. O prédio resistiu por algum tempo, mas a famosa placa de bronze desapareceu, provavelmente roubada por caçadores de metais nas décadas de abandono.

Hoje, poucos se lembram que aquele nome exótico homenageava um Prêmio Nobel da Paz que jamais voltou ao Brasil, mas que por alguns meses de 1906 simbolizou a aspiração brasileira de integração ao mundo desenvolvido.

“Quando criança eu morei de frente a estação . Então minha vida nessa época sempre foi baseada nos trens. Brincávamos nos trilhos, no qual convivíamos diariamente com a movimentação da ferrovia e lembro que haviam bastante vagões de gado que sempre ficavam no pátio frente ao embarcadouro de animais. Vagões que entravam e saiam do armazém e muito mais!’’ relato de maria Helena Bueno Santo.

São Bento: O Gabarito da Companhia Paulista

Se Elhiu Root representava a diplomacia internacional, São Bento simbolizava excelência técnica. A estação era conhecida entre ferroviários como o “gabarito” da Companhia Paulista, termo que designava o padrão de perfeição que todas as outras estações deveriam almejar.

O nome vinha de São Bento de Núrsia, patriarca do monasticismo ocidental, santo associado à ordem, disciplina e trabalho metódico. Não era coincidência: a Companhia Paulista era famosa por seu rigor operacional, e São Bento encarnava esses valores.

Inaugurada no ano de 1885, apenas com um só barracão, no qual era divido o armazém e estação na mesma construção. Durando até 1922, quando foi construída a estação exclusivamente para passageiros ao lado do barracão antigo.

O prédio seguia estilo eclético com influências neoclássicas: frontão triangular, colunas dóricas, simetria perfeita. As cores ocre e branco  eram aplicadas com tal cuidado que pareciam repintadas semanalmente, embora na verdade a manutenção fosse apenas trimestral.

Ficando conhecido as duas construções como ‘’São Bento novo’’ e ‘’são Bento velho’’. Seu pátio era formado por três trilhos, uma via principal e duas desviadas, chegando a contar com um desvio de um embarcadouro de gado que lá existia.

“Na época eu era bem criança, os ferroviários da estação estavam manobrando alguns vagões (creio que que seja os vagões do desvio do embarcadouro de gado), nisso não sei bem o que houve, uma mulher perdeu seu equilíbrio, pois era um pouco gorda, e caiu da plataforma, no exato momento que estavam passando com os vagões…. não conseguiram parar o trem pois já estava muito ‘’encima’’, e foi esmagada pelas rodas de aço de um dos vagões! Foi uma fatalidade, pois na plataforma havia bastante gente esperando o trem, além da própria família que viu o acidente acontecer.”, relatou Mauro Fernando.

Seu pátio era formado por três trilhos, uma via principal e duas desviadas, chegando a contar com um desvio de um embarcadouro de gado que lá existia.

São Bento provavelmente na década de 30. Veja o desvio do embarcadouro de gado. Foto de José Proença.

Curiosamente não havendo desvio para o armazém, sendo uma das únicas estações não contando com esse desvio. São Bento foi considerada a estação ‘’gabarito’’ da companhia paulista, pois o pico do telhado da plataforma era o mais avançado de todas as estações da paulista.

Se tornando a estação gabarito, pois se um trem passasse por são bento sem ralar no telhado, passaria em qualquer outra Com o tempo, São Bento tornou-se quase mítica. Ferroviários de outras linhas falavam dela com reverência misturada com ceticismo –será que era realmente tão perfeita quanto diziam? Visitantes confirmavam: sim, era.

Loreto e Villa-Lobos: Quando os Trilhos Viraram Música

A terceira estação dessa trinca ilustre carregava nome religioso, Loreto, referência à cidade italiana de Loreto e sua basílica, um dos principais santuários marianos do catolicismo. Mas não seria a devoção religiosa que tornaria Loreto famosa: seria a música.

Em meados da década de 1930, o compositor Heitor Villa-Lobos já então figura consolidada no cenário musical brasileiro passou uma temporada no interior paulista. Os motivos exatos dessa estadia permanecem nebulosos: alguns biógrafos sugerem que buscava tranquilidade para compor, outros mencionam compromissos profissionais em cidades da região.

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Chegada de um trem de passageiros a Loreto. Foto de José Proença

O que se sabe com certeza é que Villa-Lobos passou tempo considerável em Loreto e suas proximidades, hospedando-se em uma fazenda próxima à estação ferroviária. E ali, cercado pelo ritmo dos trens, pelo apito das locomotivas, pelo chacoalhar dos vagões, nasceu inspiração para uma das obras mais populares da música erudita brasileira: O Trenzinho do Caipira (oficialmente, Bachianas Brasileiras nº 2, movimento final).

Segundo relatos,  o compositor aproveitava as horas sentado no banco do trem e ao som das rodas com um caderninho, anotando coisas. A descrição dos sons que as diferentes locomotivas faziam, anotava tudo: o apito de partida, o ranger dos freios, o ritmo das rodas nos trilhos.

A obra resultante é genial na sua simplicidade. Villa-Lobos transcreveu musicalmente toda a jornada de um trem: a partida lenta, gradual aceleração, o balanço rítmico da velocidade de cruzeiro, as curvas, a freada progressiva, a parada final. Mais que uma composição sobre trens, era uma composição que era um trem.

Ensaios para as gravações do filme luar do sertão em Loreto, 1949. Acervo da cidade de Araras

O que torna essa história particularmente fascinante é como Villa-Lobos absorveu não apenas os sons mecânicos das locomotivas, mas também a musicalidade do ambiente ferroviário do interior paulista. O ritmo sincopado dos trilhos, o lamento pentatônico dos apitos, as vozes dos ferroviários, os pregões dos vendedores de plataforma, tudo foi destilado naquela partitura.

A estação Loreto, portanto, não foi apenas cenário passivo  foi laboratório sonoro onde um dos maiores compositores brasileiros coletou matéria-prima para arte imortal.

Curiosamente, ao contrário de São Bento e Elhiu Root, Loreto nunca foi estação particularmente importante em termos operacionais. Seu prédio era modesto, seu movimento de passageiros reduzido, sua infraestrutura básica. Mas a conexão com Villa-Lobos conferiu-lhe uma aura especial.

Quando chegavaalgum visitante mais ilustrado, os moradores faziam questão de contar a história do Villa-Lobos”, um local que virara atração turística informal.

Décadas depois, quando O Trenzinho do Caipira se tornou obra conhecida nacionalmente  tocada em escolas, incluída em trilhas sonoras, gravada por orquestras do mundo inteiro , Loreto ganhou reconhecimento tardio. Houve tentativas, nunca concretizadas, de transformar a estação em pequeno museu dedicado a Villa-Lobos e à cultura ferroviária.

A estação foi desativada em torno dos anos 1970, como tantas outras. O prédio deteriorou rapidamente. Nos anos 1990, ruiu quase completamente. Hoje, resta apenas uma plataforma parcial, tomada por vegetação.

A ferrovia como portal cultural

O que une essas três estações – Elhiu Root, São Bento e Loreto  é a demonstração de que as ferrovias paulistas eram muito mais que sistemas de transporte. Eram portais através dos quais o interior do estado se conectava a realidades maiores: à diplomacia internacional, aos padrões de excelência industrial, à alta cultura artística.

A visita de Elihu Root não foi acaso isolado. Diplomatas, cientistas, artistas estrangeiros regularmente viajavam pelo interior paulista nas primeiras décadas do século XX, atraídos pela modernidade da infraestrutura ferroviária, pela pujança da economia cafeeira, pela curiosidade sobre aquele Brasil que não cabia nos estereótipos tropicais.

A ferrovia tornava o interior acessível para quem antes só conheceria Rio e São Paulo. Personalidades internacionais podiam ver de perto as fazendas, as cidades pequenas, avida rural brasileira, mas com conforto e segurança. Isso mudou a imagem do Brasil no exterior e também a autoimagem dos brasileiros do interior.

São Bento, por sua vez, demonstrava que o Brasil não era apenas importador passivo de tecnologia e padrões. A Companhia Paulista criara algo genuinamente próprio: uma cultura ferroviária brasileira que, mantendo diálogo com modelos ingleses e americanos, desenvolvia características locais  adaptações ao clima, à topografia, aos costumes.

E Loreto provava que a ferrovia não apenas transportava mercadorias e pessoas, mas também ideias, sons, inspirações. Villa-Lobos não teria composto O Trenzinho do Caipira em um escritório urbano. Precisou estar ali, sentir a vibração dos trilhos, ouvir os apitos ecoando no vale, conversar com ferroviários, absorver aquela musicalidade específica.

O que mais impressiona nessas histórias:  reflete o maestro Ricardo Bernardes, regente especializado em Villa-Lobos, é como a ferrovia funcionava como espaço de encontro. O diplomata americano encontrando fazendeiros paulistas. O compositor erudito encontrando trabalhadores ferroviários. Culturas diferentes se tocando naquelas plataformas. A estação era, literalmente, ponto de conexão  não só entre cidades, mas entre mundos.

Epílogo: Nomes que sobrevivem aos trilhos

Hoje, quem procura essas três estações no mapa encontra ausências. Elhiu Root é área rural sem edificações. São Bento é prédio público descaracterizado. Loreto se tornou uma ruína.

Mas os nomes resistem.

Moradores antigos ainda usam essas referências: “perto de onde era o Elhiu Root”, “na altura do São Bento”, “depois do Loreto”. São fantasmas cartográficos, marcações de um tempo em que aqueles pontos significavam algo importante.

E há beleza nessa persistência. Elihu Root, secretário de Estado americano, jamais soube que uma estação ferroviária no interior paulista carregaria seu nome. Villa-Lobos provavelmente não imaginou que aquele som e apito dos trens em Loreto seria lembrado como berço de sua obra mais popular. Os construtores de São Bento não previram que “gabarito” se tornaria sinônimo de excelência perdida.

Mas aconteceu. E essas histórias  de diplomatas, santos e compositores batizando paradas ferroviárias  revelam camadas profundas de como o Brasil moderno se construiu: cosmopolita e local, técnico e artístico, conectado ao mundo mas profundamente enraizado em seu interior.

Quando os últimos trilhos foram arrancados, quando as últimas locomotivas fizeram suas viagens finais, algo se perdeu. Mas algo também permaneceu: a memória de que houve um tempo em que pequenas estações no interior paulista carregavam nomes que contavam histórias universais.

E quem sabe, quando alguém ouve O Trenzinho do Caipira, não está em alguma medida viajando novamente pelos trilhos que conectavam Elhiu Root, São Bento e Loreto  uma viagem que continua possível, mesmo sem trens, mesmo sem estações, pela única ferrovia indestrutível: aquela que existe na memória e na música.

Foto de 1967, um dos últimos registros de locomotiva a vapor. Locomotiva modelo de rodagem 4-6-0, fabricação Baldwin, número #40. Foto de Plinio da Silva Telles

Créditos: Texto baseado no livro de Ângelo Rafael sobre o Ramal de Descalvado da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Pesquisa histórica, levantamento documental e compilação de relatos por Ângelo Rafael, com colaboração de Anderson Alves dos Santos (Kovero), Leandro Guidini e demais preservadores da memória ferroviária do interior paulista.