3 de dezembro de 1916 – Número 3
Um retrato do Brasil em plena primeira Guerra Mundial
Enquanto a Europa sangrava nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, em Cordeiro, interior do Rio de Janeiro, circulava aos domingos um pequeno jornal que retratava o cotidiano, as fofocas, os amores e os costumes de uma cidadezinha brasileira do início do século XX.
“O Martello” – com dois L’s, grafia da época – se apresentava como um periódico de “crítica e literatura / humorismo e variedades”, propriedade de uma associação com redatores diversos. Era 1916, o Brasil ainda vivia a Belle Époque tropical, e a imprensa local fervilhava com publicações semanais que misturavam literatura, sátira social e crônicas do cotidiano.
A estrutura do jornal
Esta edição de dezembro de 1916 traz em suas páginas uma mistura fascinante de gêneros:

Literatura e reflexão
A página de abertura apresenta textos filosóficos e melancólicos, típicos do romantismo tardio que ainda dominava as letras brasileiras. Um dos textos, intitulado “Logares felizes”, reflete sobre o fim das coisas e a passagem do tempo, tema recorrente em uma época marcada pelas incertezas da guerra mundial.
A coluna social: “Não sympathisamos…”
Aqui está o coração do jornal humorístico! Esta seção listava, de forma satírica, personagens locais e suas características. Era o equivalente às redes sociais da época, todos queriam saber quem estava sendo “cutucado” publicamente.
Alguns exemplos curiosos mencionados:
- “com o chapéosinho de 200 réis, do Zé Mussi” – provavelmente uma crítica a alguém usando um chapéu barato ou fora de moda;
- “com o terno ensebado, do Orozimbo” – “ensebado” significa sujo de sebo/gordura, mostrando falta de cuidado com a aparência;
- “com a barba de mandy, do João Rossetti” – “mandy” era uma gíria da época, possivelmente referindo-se a uma barba mal cuidada;
- “com a mania do Cesarino, em querer ser actor dramatico” – alguém que sonhava ser ator e era motivo de piada;

Fofocas e mexericos: “Implico-me…”
Outra coluna deliciosa! Aqui o jornal “implicava” com situações do cotidiano local:
- Cigarros de determinadas marcas
- O comportamento do “Orozimbo” (personagem recorrente!)
- Facilidades nas fazendas de alguém chamado Zé Rossetti
- O olho de pontaria do Cesarino
Contos: “Contos electricos”
O jornal publicava ficção! A seção traz um conto sobre “Lulú”, descrito como um valdivioso (palavra da época para valentão, brigão). A história narra situações do cotidiano com humor, mostrando o estilo de narrativa popular da época.
Noticiário local
A seção “NOTICIARIO” trazia informações práticas:
- “Em viagem” – Anunciava quem viajaria para Araras para assistir festas religiosas do Manel de Jesus, Orozimbo Porto e José Mussi;
- Negócios – Informava sobre Gumercindo Victorino indo ao Rio Claro para depois regressar a Araras;
- “Cinema Radium” – Anunciava espetáculos de cinema, uma novidade tecnológica da época!
Anúncios: Uma janela para o passado
Hotel dos Viajantes
De Mariano Cassavia – Rua Toledo Barros
O anúncio promete:
- “Estabelecimento montado a capricho e hygiene”
- “Comida a toda a hora”
- “Conforto e tranquillidade às exmas. familias”
Note a ênfase em “hygiene”, o movimento higienista estava em alta no Brasil, especialmente após epidemias de febre amarela e gripe espanhola que assolaram o país.
Cinema Radium
O cinema era a grande novidade tecnológica! O anúncio menciona “programmas distribuidos” e “film relativo aos assumptos da grande guerra” – a Primeira Guerra Mundial era consumida como entretenimento nas telonas!

Expressões e linguagem da época
Alguns termos que saltam aos olhos:
- “Ensebado” – sujo de sebo/gordura
- “Valdivioso” – valentão, brigão
- “Exmas. familias” – Excelentíssimas famílias (tratamento formal)
- “Hygiene” – escrita antiga de “higiene”
- “Sympathisamos” – com Y, grafia pré-reforma ortográfica
- “Implicar-se” – irritar-se, ter birra com algo
- “Asignaturas” – assinaturas do jornal
- “Redactores” – redatores
A pontuação também era diferente, com uso frequente de ponto e vírgula onde hoje usaríamos vírgulas simples.
O contexto histórico: 1916
No mundo
- A Primeira Guerra Mundial estava no auge (1914-1918)
- A Batalha de Verdun e a Batalha do Somme mataram milhões
- O Brasil ainda era neutro (só entraria na guerra em 1917)
No Brasil
- Presidência de Wenceslau Brás (1914-1918)
- Economia cafeeira dominante
- Início da industrialização nas grandes cidades
- Interior ainda muito rural e ligado aos costumes do século XIX
Em Cordeiro
Como vemos pelo jornal, a vida seguia com suas pequenas fofocas, mexericos, bailes, idas ao cinema e preocupações cotidianas. A guerra mundial parecia distante, aparecia apenas como curiosidade nas telas do Cinema Radium.
Personagens recorrentes
Alguns nomes aparecem várias vezes no jornal, sugerindo serem figuras conhecidas da cidade:
- Orozimbo (Porto) – Citado múltiplas vezes, parece ser alvo frequente de piadas
- Zé Mussi / José Mussi – Outro personagem recorrente
- João Rossotti – Mencionado na coluna de críticas
- Cesarino – Aspirante a ator dramático
- Gumercindo (Victorino) – Comerciante local
- Manequinho – Figura local mencionada nas crônicas
O valor histórico de “O Martello”
Este pequeno jornal é um documento precioso porque:
- Registra a linguagem oral da época através das colunas de humor
- Mostra o cotidiano real – não apenas grandes eventos, mas a vida comum
- Revela a estrutura social – quem eram as figuras importantes, o que se valorizava
- Documenta costumes – do vestuário aos entretenimentos
- Preserva a memória local – nomes, lugares e estabelecimentos de Cordeiro
Enquanto jornais das capitais cobriam política e guerra, “O Martello” fazia algo igualmente importante: registrava a vida simples de uma pequena cidade brasileira, com seus personagens, suas manias, suas fofocas e seus sonhos.
Para refletir
Imagine se, daqui a 100 anos, alguém encontrar posts das redes sociais de hoje. Que imagem teriam de nossa época? “O Martello” cumpre exatamente esse papel: é o Instagram, o Twitter e o jornal local de 1916, tudo em um.
Cada nome citado foi uma pessoa real. Cada piada tinha um contexto. Cada anúncio representava o ganha-pão de alguém. Este pequeno jornal de três páginas é um portal do tempo para o Brasil de mais de um século atrás.
Fonte: O Martello, Cordeiro, 3 de dezembro de 1916, Ano I, Número 3.
Acervo: Ta no Arquivo
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