Veja também: como uma derrota política se transformou na maior vitória da Companhia Paulista.
Há histórias que começam com um sonho audacioso e terminam em glória. Outras começam com um sonho audacioso e quase morrem no meio do caminho. Esta é a história de um ramal ferroviário que quase não saiu do papel, mas que quando finalmente se concretizou, mudou para sempre o destino de cidades inteiras no interior paulista.
Corria o ano de 1874. A Companhia Paulista de Estradas de Ferro já havia conquistado um feito notável: seus trilhos cortavam o interior paulista, ligando Jundiaí a Campinas, avançando por Limeira e Rio Claro, com o ambicioso objetivo de chegar até Ribeirão Preto. O café continuava sendo o motor da expansão ferroviária, e os fazendeiros pressionavam cada vez mais: “Queremos os trilhos chegando até nossas propriedades!”
Mas havia um problema. Um problema político, diga-se de passagem.
Quando a Companhia Paulista estava prestes a realizar o sonho de ligar seus trilhos até as ricas terras de Ribeirão Preto, o governo imperial simplesmente disse: “Não.” A concessão foi negada e entregue a outra empresa; a Companhia Mogyana de Estradas de Ferro. Foi uma das maiores “brigas” ferroviárias em solo brasileiro.
Porém, onde uma porta se fecha, uma janela se abre. E a Companhia Paulista, determinada a não desperdiçar seus investimentos e manter sua relevância, decidiu buscar uma alternativa: se não podiam ir até Ribeirão Preto, iriam criar um ramal que atendesse outras regiões produtoras de café. Assim nasceu o projeto da “Linha do Mogi Guaçu”.

A linha que pretendia seguir o rio
A ideia inicial era clara: construir uma linha que seguisse em direção ao Rio Mogi Guaçu, passando pela Vila de Nossa Senhora do Patrocínio das Araras, pelo distrito de Manoel Leme, chegando até a Vila de Bom Jesus dos Aflitos de Pirassununga, com a secreta esperança de que, no futuro, ainda pudessem estender os trilhos até Ribeirão Preto.
Já foi considerado como linha tronco da Companhia Paulista, sendo uma linha de muito glamour e prestígio! Em 1874, com boa parte das obras da construção da linha entre Campinas e Rio Claro já bem adiantadas, em fevereiro deste mesmo ano, a Companhia Paulista deu início aos estudos de sua futura linha que pretendia seguir em direção ao Rio Mogi Guaçu.
O local onde seria designado para o “desvio” do futuro ramal estava em algum ponto entre Limeira e uma pequena Vila conhecida como “Cordeiros” (atual Cordeirópolis). Passaria pela Vila de Nossa Senhora do Patrocínio das Araras, pelo distrito de Manoel Leme, e chegaria até a Vila de Bom Jesus dos Aflitos de Pirassununga, com a intenção de estender seus trilhos até Ribeirão Preto.
Inicialmente projetada para a bitola de 1 metro, posteriormente foi alargada para bitola de 1,60 metro para evitar a baldeação obrigatória na estação de “Cordeiros” pela diferença de bitolas (bitola é a largura do trilho). Afinal, fazer os passageiros e cargas trocarem de trem toda vez seria um transtorno logístico e comercial.
Cordeirópolis: A cidade que nasceu de uma curva
Aqui começa uma história curiosa. O local onde havia de ser designado para o “desvio” do futuro ramal seria em algum ponto entre Limeira e uma pequena Vila conhecida como “Cordeiros”. Foi cogitado também de se fazer o ponto inicial desta linha nas proximidades da Fazenda de Ibicaba, onde décadas mais tarde foi fundada a estação Ibicaba. Mas por conta de estudos topográficos e terrenos inviáveis de se implantar uma ferrovia, o local escolhido foi a curva do KM 117, em Cordeiros!
Creio que na época houve bastante comentários sobre a nova estação que levaria o mesmo nome do pequeno vilarejo, por ser uma área literalmente “deserta”! Mas a Companhia Paulista tinha seus motivos técnicos: era ali que a topografia permitia o desvio necessário.
O local onde havia de ser designado para o “desvio” do futuro ramal, seria em algum ponto entre Limeira e uma pequena Vila conhecida como “Cordeiros” (atual Cordeirópolis)! Foi cogitado também, de se fazer o ponto inicial desta linha nas proximidades da fazenda de Ibicaba, onde décadas mais tarde foi fundada a estação Ibicaba! Mas por conta de estudos topográficos e terrenos inviáveis de se implantar uma ferrovia, o local escolhido foi a curva do KM117, em Cordeiros!
E assim, uma pequena vila ganhou importância estratégica. O nome “Cordeiros” era simples e bucólico, mas com o tempo e a importância crescente da estação ferroviária, o vilarejo se transformou. Sua denominação mudou-se para Cordeirópolis em 1948, ocorrendo a emancipação da cidade em 24 de dezembro de 1948. De “curva no meio do nada” a cidade próspera, tudo graças aos trilhos.

As obras: um esforço hercúleo
As obras do “Ramal do Mogi Guaçu” tiveram início no dia 18 de fevereiro de 1876. Neste mesmo ano foi entregue a estação de Cordeiros! A construção de ferrovias em terreno paulista não era tarefa para os fracos. Estamos falando de uma região de serras, vales, rios, terrenos instáveis. Não era simplesmente colocar trilhos no chão, era necessário cortar morros, aterrar vales, construir pontes, calcular rampas que as locomotivas conseguissem vencer.
Com o seu primeiro trecho sendo aberto ao tráfego no dia 10 de abril de 1877, chegando à Vila de Nossa Senhora do Patrocínio das Araras, com 18 quilômetros de extensão! A viagem inaugural foi feita na locomotiva número #1 “Baronesa”, nome dado em homenagem a esposa do barão, dona Maria Joaquina. Quatro carros de passageiros percorreram o trecho de 14km, ocorrendo a viagem inaugural.
Meses mais tarde, em outubro de 1877, a linha chegava ao distrito de Manoel Leme. Até então, eram todas estações provisórias, sendo abertas como pequenos barracões de madeira com uma curta plataforma também em madeira! No decorrer dos anos algumas foram sendo reformadas, e outras sendo até reconstruídas em alvenaria!
E finalmente, após quase dois anos, no dia 15 de janeiro de 1880, é aberto ao tráfego o trecho entre a Villa de Bom Jesus dos Aflitos de Pirassununga e Porto Ferreira, inaugurando suas estações.
A intenção da Companhia Paulista era chegar até as terras de Ribeirão Preto, porém tal concessão não foi dada! E sim entregue a Companhia Mogyana de Estradas de Ferro. Vindo-se impedida de prosseguir com seus trilhos até Ribeirão Preto, a Paulista se vê em um “beco sem saída”, chegando a discutir uma possível desativação desta linha, pois como sua intenção não foi atendida, ficaria a dúvida no ar “valeu a pena tanto esforço”?
Mas daí surgiu uma “luz no fim do túnel”: levar seus trilhos até a Villa de Bethlem do Descalvado, um grande polo cafeeiro, de terras férteis e de riquezas. Tendo o término da linha nessa mesma Villa. Sendo aberto esse trecho em 7 de novembro de 1881.
Daí então, podemos dizer que surgiu a sua famosa denominação de O Ramal de Descalvado!
O hino que celebrava a glória dos trilhos
Em 1968, no centenário da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, foi composto um hino que até hoje emociona aqueles que conhecem sua letra. Era uma época em que as ferrovias eram motivo de orgulho nacional, símbolo de progresso, modernidade e futuro promissor.
O hino dizia:
“Tu és a filha amada de Campinas, esbelta, forte e majestosa! Teus leitos lembram sempre, os bravos bandeirantes! De um valor desbravador, que na pujança do dever, porvir e harmonia, ligou São Paulo aos rincões!
És centenária, pelos teus feitos varonis, de nossos e outros, de outras terras de então, que te recorda até aqui! Juramos, pois, fidelidade, de continuar nossa missão, para entregar-te aos nossos filhos, como todo orgulho e devoção!
Teus longos trilhos, levam felicidade, esperança e ardor! As maravilhas dos campos e das flores, o semblante e o amor! E nessa etapa feliz de nossos dias, de luta e labor, daremos sois fieis a ti! A confiança, a grandeza do brasil!”
Aquele hino não era apenas uma celebração de uma empresa ferroviária. Era a celebração de uma era inteira, de um tempo em que acreditávamos que os trilhos levariam “felicidade, esperança e ardor” para todos os rincões do país.
Era a época em que a Companhia Paulista de Estradas de Ferro representava muito mais que uma empresa de transporte: era símbolo de engenharia, eficiência, progresso. Suas estações eram construídas com capricho, suas locomotivas eram as mais modernas, seus funcionários eram treinados com rigor. A “Paulista” era motivo de orgulho.
E o Ramal de Descalvado, apesar de ter quase não saído do papel, era parte fundamental dessa história gloriosa.

Anos antes, em 1880: chegando a Porto Ferreira
Voltemos um pouco no tempo. Os trilhos da Companhia Paulista chegaram ao pequeno povoado de Bethlem do Descalvado (Belém) no ano de 1881, sendo a linha aberta ao tráfego em 7 de novembro!
Mas a história de Porto Ferreira merece destaque especial. Tanto a cidade quanto a estação levaram o nome PORTO FERREIRA, pois no princípio da chegada da ferrovia, tratava-se de uma pequena vila no qual dependia do transporte de balsa pelo rio Mogi Guaçu.
Contando com uma balsa que ligava as duas extremidades do rio, tendo como proprietário João Ferreira. Por isso o nome de Porto Ferreira ou como era chamada em seus tempos áureos de “Porto do Ferreira”! Anos mais tarde, com a construção da ponte metálica do ramal de Santa Rita que realizava a travessia do rio, o transporte de balsas teve seu fim!
A estação inicialmente, como todas as outras, foi construída em pequeno porte servindo como estação provisória, tendo ocorrido sua demolição no ano de 1913, no qual a partir de então, teve sua construção definitiva, sobrevivendo até os dias de hoje!
A epopeia que valeu a pena
Hoje, mais de 140 anos depois daquela primeira pá de terra movida em fevereiro de 1876, olhamos para trás e percebemos a magnitude daquela obra.
Não estamos falando apenas de trilhos e locomotivas. Estamos falando de um esforço hercúleo em terreno montanhoso, de engenheiros que trabalharam com instrumentos rudimentares se comparados aos de hoje, de trabalhadores que literalmente moldaram a paisagem com suas próprias mãos.
Estamos falando de cidades inteiras que nasceram ou se transformaram por causa daqueles trilhos: Cordeirópolis, Remanso, Araras, Loreto, Elhiu Root (antiga Guabirobas), São Bento, Leme, Souza Queiroz, Pirassununga, Laranja Azeda, Porto Ferreira, Butiá, e finalmente Descalvado.
Cada estação representava esperança. Cada apito de locomotiva anunciava progresso. Cada saco de café embarcado nos vagões significava prosperidade para fazendeiros, comerciantes, trabalhadores.
E tudo isso quase não aconteceu. O ramal quase não saiu do papel por causa de disputas políticas, desafios técnicos e dúvidas sobre sua viabilidade econômica.
Mas saiu. E como saiu! Durante décadas, o Ramal de Descalvado foi uma das joias da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Suas estações eram bem cuidadas, suas locomotivas eram modernas, seus horários eram pontuais.
Reflexão final: O legado dos desbravadores
Quando lemos o hino da Companhia Paulista que celebrava “os bravos bandeirantes” e “o valor desbravador”, não podemos deixar de pensar nos verdadeiros desbravadores: aqueles homens que, munidos de pás, picaretas e uma fé inabalável no progresso, construíram quilômetro após quilômetro de trilhos em terreno hostil.
Construir ferrovias no interior paulista do século XIX era um desafio que hoje mal conseguimos dimensionar. Não havia maquinário pesado como temos hoje. Não havia GPS para calcular trajetos. Não havia computadores para simular a resistência de pontes e aterros. Era conhecimento empírico, força braçal, e uma dose generosa de coragem.
E o resultado? Cidades inteiras que devem sua existência ou ao menos sua configuração atual àqueles trilhos. Famílias que prosperaram. Histórias que foram vividas. Memórias que resistem ao tempo.
O Ramal de Descalvado quase não saiu do papel. Mas quando saiu, mudou tudo.
Hoje, muitos dos trilhos foram arrancados. Algumas estações viraram centros culturais, outras foram demolidas, outras simplesmente apodrecem abandonadas. Mas a memória permanece. E com ela, o reconhecimento de que houve uma época em que acreditávamos que os trilhos levariam “felicidade, esperança e ardor” para todos os rincões do país.
Talvez não tenha sido exatamente assim. Mas por algumas décadas gloriosas, foi bonito acreditar.
Créditos: Texto baseado no livro de Ângelo Rafael sobre o Ramal de Descalvado da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Pesquisa histórica, levantamento documental e compilação de relatos por Ângelo Rafael, com colaboração de Anderson Alves dos Santos (Kovero), Leandro Guidini e demais preservadores da memória ferroviária do interior paulista.