Por que Dom Pedro II estava segurando uma pá em 1854? A história que poucos conhecem

Por muito tempo, ouvimos dizer que o café foi a “locomotiva” do Brasil. Mas poucos sabem que essa expressão é literalmente verdadeira: foi o café quem trouxe as locomotivas de ferro e aço para o interior paulista. Esta é a história de como uma bebida mudou para sempre a geografia, a economia e o destino de cidades inteiras.

Imagine o interior de São Paulo em meados do século XIX. Vastas fazendas de café se espalhavam pelo que hoje conhecemos como Campinas, Limeira, Araras, Rio Claro. A produção era tão grande que, na década de 1830, o Brasil já era o maior exportador mundial de café. Mas havia um problema gigantesco: como levar todo esse café até os portos?

A resposta era arcaica e dolorosa: lombo de mula.

Locomotiva “Baronesa” na estação CENTRAL DO BRASIL no Rio de Janeiro. Hoje se encontra
preservada no museu do trem de RJ. Foto do acervo do museu nacional. Reprodução com uso de IA.

Muitos de nós crescemos ouvindo que o café era “transportado em lombo de mula”, mas raramente paramos para pensar no que isso realmente significava. Tratava-se de formar comitivas imensas de mulas carregadas com sacos de café, que seguiam em fila por dias e dias, atravessando serras, rios e matas, até chegarem aos portos de Santos, Rio de Janeiro ou Guanabara.

Era um transporte lento, caro e ineficiente. Grande parte da carga se perdia pelo caminho , ora porque os animais não aguentavam o peso, ora porque o café se estragava com a umidade das chuvas. E conforme a produção aumentava, o problema se tornava insustentável. Quanto mais café produzido, mais mulas eram necessárias. E as mulas, bem, elas não se multiplicam na mesma velocidade que os pés de café.

Foi nesse contexto de desespero logístico que o Brasil voltou seus olhos para uma invenção que já revolucionava a Europa e os Estados Unidos desde décadas antes: a ferrovia.

A locomotiva que mudou tudo

Na Inglaterra, algumas décadas antes, era inventado um tipo de transporte revolucionário. Uma “besta” de aço cuspia fogo, andava sobre barras de ferro paralelas e conseguia puxar cargas de peso nunca antes visto. Mais importante: fazia isso em um tempo recorde.

Por coincidência ou não, algumas décadas antes da ferrovia ser inventada na Inglaterra, o café começava a se espalhar pelo interior brasileiro. E quando o café se tornou o principal produto de exportação do império, praticamente colocando o Brasil “no mapa” mundial do setor alimentício, ficou claro que o transporte por lombo de mula havia chegado ao seu limite.

Porém, trazer esse tipo de transporte para o Brasil não seria tarefa simples. Era necessário investir urgentemente em um método de transporte eficiente que tivesse resultados satisfatórios. E foi assim que, por coincidência ou não, o governo imperial decidiu que era hora de trazer as locomotivas para cá.

A primeira ferrovia brasileira foi inaugurada no dia 30 de abril de 1854. Os trilhos ligavam o porto de Mauá à fragoso, no Rio de Janeiro, uma extensão de apenas 14 quilômetros. Mas aqueles 14 quilômetros representavam uma revolução.

A viagem inaugural foi feita na locomotiva número 1, batizada de “Baronesa” em homenagem à esposa do Barão de Mauá, Dona Maria Joaquina. A cerimônia contou com a presença do próprio Imperador Dom Pedro II e da Imperatriz Teresa Cristina, além de membros da família real.

O Barão de Mauá, empolgado, entregou uma pá ao Imperador e o convidou a “assentar o primeiro dormente da estrada”. A falta de “intimidade” e costume do Imperador com o trabalho braçal gerou o “humor” da festa! Mas aquele momento simbolizava muito mais que um simples passeio de trem: era o Brasil entrando na era industrial.

Imagem reproduzida com IA

Quatro carros de passageiros percorreram aquele trecho de 14 km na viagem inaugural. Pela primeira vez, um trem percorria solos brasileiros.

O café puxa os trilhos para o interior

A locomotiva Baronesa foi construída em 1852 pela fabricante inglesa William Fair Bairns & Sons, em Manchester. Com 7,5 metros de comprimento, 2,5 metros de largura e 3,40 metros de altura, pesava próximo a 18 toneladas. Percorria trilhos com bitolas de 1,676 metros a chamada “bitola indiana”.

Mas demorou mais tempo para que os trilhos chegassem ao interior paulista, onde estava o verdadeiro ouro: o café.

Entre o final da década de 1840 e início da década de 1850, o banqueiro Irineu Evangelista de Souza, posteriormente Barão de Mauá, solicitou ao governo imperial o privilégio da construção de uma ferrovia ligando o porto de Mauá à Baía de Guanabara, seguindo para a serra de Petrópolis. Dessa vez, com total êxito.

As obras da construção da futura ferrovia se iniciaram no ano de 1852, com uma grande cerimônia festiva! O convite se estendeu praticamente a todos os nobres da época, contando com a presença do Imperador Dom Pedro II e a Imperatriz Teresa Cristina, além de outros membros da família real.

Mas foi só em 1867 que aconteceu o grande salto: a inauguração da São Paulo Railway Company, ligando o porto de Santos até Jundiaí. A SPR foi uma obra prima na história da engenharia brasileira, contando com um magnífico sistema de operação funicular, no qual o trem era puxado por cabos de aço movimentados por polias, auxiliando o deslocamento nas subidas e descidas da Serra do Mar.

Agora sim, o café do interior paulista tinha um caminho direto até o porto. E foi aí que tudo mudou.

Nasce o ramal de Descalvado

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Com a SPR funcionando a todo vapor, os fazendeiros do interior começaram a pressionar para que os trilhos avançassem cada vez mais. Se o café chegava até Jundiaí de trem, por que não construir ramais que chegassem até as próprias fazendas?

Em 1872, o primeiro trecho a ser inaugurado pela Companhia Paulista de Estradas de Ferro foi entre Jundiaí e Campinas. Daí para frente, os trilhos avançaram em direção ao interior: Campinas, Limeira, Rio Claro, chegando a Ribeirão Preto em 1875.

Porém, a Companhia Paulista foi impedida de prolongar seus trilhos até Ribeirão Preto. Tal concessão não foi dada! E sim, foi entregue à Companhia Mogyana de Estradas de Ferro, resultando em uma das maiores “brigas” ferroviárias em solos brasileiros.

Mas havia uma “luz no fim do túnel”: em 1876, as obras do “Ramal do Mogi Guaçu” tiveram início. A linha pretendia seguir em direção ao Rio Mogi Guaçu, passaria pela Vila de Nossa Senhora do Patrocínio das Araras, pelo distrito de Manoel Leme, e chegaria até a Villa de Bom Jesus dos Aflitos de Pirassununga, com a intenção de estender seus trilhos até Ribeirão Preto.

Inicialmente projetada para a bitola de um metro, posteriormente foi alargada para bitola de 1,60 metro para evitar a baldeação obrigatória na estação de “cordeiros” pela diferença de bitolas.

O local onde seria designado o “desvio” do futuro ramal estava em algum ponto entre Limeira e uma pequena vila conhecida como “cordeiros” (atual Cordeirópolis). Foi cogitado, inclusive, fazer o ponto inicial nas proximidades da Fazenda Ibicaba, onde décadas mais tarde seria fundada a estação Ibicaba. Mas por conta de estudos topográficos e terrenos inviáveis para se implantar uma ferrovia, o local escolhido foi a curva do KM 117, em Cordeiros.

As obras do “Ramal do Mogi Guaçu” tiveram início no dia 18 de fevereiro de 1876. Nesse mesmo ano, foi entregue a estação de Cordeiros! Com o seu primeiro trecho sendo aberto ao tráfego no dia 10 de abril de 1877, chegando à Vila de Nossa Senhora do Patrocínio das Araras, com 18 quilômetros de extensão. Meses mais tarde, em outubro, a linha chegava ao distrito de Manoel Leme.

E finalmente, após quase dois anos, no dia 15 de janeiro de 1880, era aberto ao tráfego o trecho entre a Villa de Bom Jesus dos Aflitos de Pirassununga e Porto Ferreira, inaugurando suas estações.

A intenção da Companhia Paulista era chegar até as terras de Ribeirão Preto, porém tal concessão não foi dada! E sim, entregue à Companhia Mogyana de Estradas de Ferro, resultando em uma das maiores “brigas” ferroviárias em solos brasileiros.

Dali surgiu a sua famosa denominação: O Ramal de Descalvado.

O Hino que ninguém mais canta

Em 1968, no centenário da Companhia Paulista, foi composto um hino emocionante que dizia:

“Tu és a filha amada de Campinas, esbelta, forte e majestosa! Teus leitos lembram sempre, os bravos bandeirantes! De um valor desbravador, que na pujança do dever, porvir e harmonia, ligou São Paulo aos rincões!”

Aquele hino celebrava não apenas uma empresa ferroviária, mas toda uma época em que os trilhos representavam progresso, conexão, futuro. As locomotivas Baldwin de rodagem 4-4-0 puxavam composições que carregavam não apenas café, mas esperança.

Hoje, mais de um século depois, restam apenas algumas estações transformadas em centros culturais, trilhos enterrados sob o asfalto, e memórias que insistem em não morrer completamente.

Reflexão final

Quando falamos que “o café foi a locomotiva do Brasil”, não estamos fazendo apenas uma metáfora bonita. Estamos descrevendo uma realidade concreta: foram os grãos de café que pagaram pelos trilhos de ferro, que trouxeram as locomotivas inglesas e alemãs, que construíram estações que hoje são patrimônio histórico.

O café mudou o destino do interior paulista de forma irreversível. Cidades como Cordeirópolis, Araras, Leme, Pirassununga e Porto Ferreira existem nos moldes que conhecemos hoje porque um dia os trilhos chegaram ali. E os trilhos chegaram porque o café precisava viajar.

Mas há uma ironia cruel nessa história: o mesmo café que trouxe os trilhos também contribuiu para o seu abandono. Quando o café entrou em crise e a economia se diversificou, os trens perderam sua razão de existir aos olhos dos governantes. O rodoviarismo venceu, e os trilhos foram arrancados.

Hoje, resta-nos resgatar essas memórias antes que desapareçam por completo.

Créditos: Texto baseado no livro de Ângelo Rafael sobre o Ramal de Descalvado da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Pesquisa, levantamento histórico e relatos compilados por Ângelo Rafael, com colaboração de Anderson Alves dos Santos (Kovero) e outros preservadores da memória ferroviária paulista.