Se hoje os fogos de artifício são lembrados apenas nas grandes festas, houve um tempo em que eles faziam parte da rotina de Cordeirópolis

Imagine uma noite qualquer nos anos 1920. Não é véspera de ano novo. Não é dia de festa junina. É apenas uma terça-feira comum. Mas de repente, o céu escuro se ilumina com um estouro colorido que faz as crianças correrem para a rua.
Pum! Vermelho. Pum! Verde. Pum! Dourado.
Não era show pirotécnico importado. Não era evento especial. Era apenas mais um dia na vida de quem vivia numa cidade que produzia seus próprios fogos de artifício.
Entre 1918 e os anos 1940, Cordeirópolis teve quatro fábricas de fogos funcionando ao mesmo tempo. Quatro! Em uma cidade pequena do interior paulista, isso significava que o cheiro de pólvora, o barulho de rojões sendo testados e o brilho repentino no céu faziam parte do cotidiano.
Esta é a história de quando o céu de Cordeirópolis brilhava todas as noites.
Quatro fábricas, uma cidade em chamas
1918. O Brasil ainda se recuperava da primeira Guerra Mundial. A gripe espanhola aterrorizava o país. Mas em Cordeirópolis, uma nova indústria começava a surgir: a produção artesanal de fogos de artifício.
Aos poucos, quatro fábricas se espalharam estrategicamente pela cidade:
Fábrica 1: proximidades da atual Escola Jamil Abrahão Saad
Localizada na Vila Santo Antônio, essa seria uma das maiores e também uma das mais lembradas, por um motivo trágico que veremos adiante.
Fábrica 2: Rua José Moreira
Onde hoje funciona uma clínica veterinária, outrora havia barracões onde se manipulava pólvora e se enrolavam estopins.
Fábrica 3: Rua Guilherme Krauter
Em frente ao prédio da Telefônica, esta fábrica era uma das mais centrais, o que significava que explosões acidentais ou intencionais eram ouvidas por toda a cidade.
Fábrica 4: Futuro prédio da Ramenzoni
A última das quatro grandes, essa fábrica operou até meados dos anos 1940, sendo uma das últimas a fechar.
Quatro fábricas. Dezenas de trabalhadores. Milhares de foguetes, rojões, bombas e traques
Cordeirópolis não era apenas uma cidade que usava fogos, era uma cidade que vivia de fogos.
Um ofício arriscado
Trabalhar com pólvora nunca foi para os fracos de coração
Imagine entrar todos os dias em um barracão de madeira onde toneladas de material inflamável estão armazenadas. Onde um único descuido, uma faísca, um atrito, um estopim mal cortado pode transformar tudo em chamas.
Era assim o dia a dia nas fábricas de fogos de Cordeirópolis.
Os trabalhadores na maioria homens, mas também algumas mulheres corajosas passavam horas:
- Misturando pólvora
- Enrolando papéis ao redor de tubos de bambu
- Cortando estopins na medida exata
- Enchendo bombas com misturas químicas
- Testando rojões nos fundos das fábricas
Não havia equipamento de segurança moderno. Não havia extintores automáticos. Não havia seguro de vida robusto.
Havia apenas a perícia passada de pai para filho, a coragem de quem precisava do trabalho e a fé de que, naquele dia, nada daria errado.
Mas nem sempre dava certo.
O dia em que a fábrica virou inferno
Um dos episódios mais lembrados pelos mais velhos é o incêndio que destruiu a fábrica próxima à Escola Jamil.
Ninguém sabe exatamente o que aconteceu. Uma faísca? Um estopim que queimou rápido demais? Um descuido?
O fato é que, em questão de minutos, o barracão estava em chamas.
E quando uma fábrica de fogos pega fogo, não é um incêndio comum. É um espetáculo no pior sentido da palavra.
Explosões em cadeia. Rojões subindo em todas as direções. Bombas explodindo no chão. Estopins acesos correndo como cobras de fogo pelo terreno.
As pessoas corriam. Algumas para ajudar. Outras para se proteger. Muitas apenas para ver, porque, por mais terrível que fosse, era impossível desviar os olhos.
Felizmente, segundo os relatos, não houve mortes. Mas a fábrica foi completamente destruída. E com ela, parte da produção que sustentava famílias inteiras.
Outros incêndios menores aconteceram ao longo dos anos. Fazia parte do risco. Fazia parte da profissão.
E ainda assim, enquanto havia demanda, as fábricas continuavam operando.
O encanto das festas
Mas por que alguém arriscaria tanto?
A resposta estava no céu.
Toda vez que uma festa religiosa se aproximava, e em Cordeirópolis e na região; elas eram muitas , as fábricas trabalhavam em ritmo acelerado.
Festa de Santo Antônio (o padroeiro da cidade) era a mais esperada. Durante dias, os preparativos envolviam:
- Centenas de foguetes
- Dezenas de bombas
- Traques que explodiam em sequência
- Rojões coloridos
- Girândolas que rodavam no ar
E quando a noite da festa chegava…
O céu de Cordeirópolis se transformava.
Vermelho, verde, dourado, prateado. Explosões que faziam o chão tremer. Luzes que refletiam nos rostos maravilhados das crianças.
Não era apenas um show. Era devoção. Era comunidade. Era a cidade inteira celebrando junta.
Para os moradores, o estalar dos rojões e o colorido no céu eram sinal de que a vida estava em ordem. De que, apesar das dificuldades, ainda havia motivo para celebrar.
Memórias de quem Viu
Quem viveu aquela época guarda memórias vívidas.
Em 2008, quando foi realizada a reportagem no Jornal Expresso, os depoimentos eram:
“Eu era menina, mas lembro do barulho. Todo dia tinha teste de foguete. A gente já sabia: ‘Lá vem bomba!’ E corria pra ver subir. Era bonito demais.”
Outros moravam próximos ou teve parentes que trabalharam nas fábricas:
“Na festa de Santo Antônio, a gente não dormia. Ficava na janela vendo os fogos. Parecia que o céu inteiro estava pegando fogo. Era lindo e assustador ao mesmo tempo.”
O fim de uma era
Como todas as coisas, as fábricas de fogos de Cordeirópolis tiveram seu fim.
Os motivos foram vários:
1. Acidentes frequentes
Incêndios e explosões tornavam a atividade cada vez mais arriscada e cara.
2. Modernização das leis de segurança
Com o tempo, o Estado começou a regulamentar a produção de fogos. As exigências aumentaram. As pequenas fábricas artesanais não conseguiam se adequar.
3. Concorrência de grandes indústrias
Fábricas maiores, de outras regiões, começaram a dominar o mercado. Produziam em escala, com mais segurança e preços competitivos.
4. Mudança cultural
As festas religiosas continuaram, mas o uso massivo de fogos começou a diminuir. A tradição foi se perdendo.
Até meados dos anos 1940, a produção havia desaparecido completamente de Cordeirópolis.
Os barracões foram demolidos ou reaproveitados. O cheiro de pólvora sumiu das ruas. O céu voltou a ser apenas céu, escuro, silencioso, sem surpresas.
O que ficou
Mais de 80 anos depois, não restam mais fábricas. Não restam foguetes feitos à mão. Não resta o barulho cotidiano dos rojões sendo testados.
Mas resta a memória.
A memória de quem viu o céu explodir em cores.
A memória de quem correu para se proteger de um incêndio.
A memória de quem trabalhou com pólvora nas mãos e fé no coração.
A memória de quem era criança e achava que aquilo nunca ia acabar.
As fábricas de fogos de Cordeirópolis foram mais do que indústrias. Foram parte da identidade da cidade. Foram fonte de renda, de orgulho, de celebração.
E quando olhamos para o céu em uma noite de festa e vemos fogos subindo, podemos lembrar:
Houve um tempo em que tudo isso era feito aqui. Por nossas mãos. Para nossos céus.
Você tem histórias?
Este artigo faz parte da série “Retratos do Passado”, do jornal Expresso de 2008.
Se você tem:
- Fotos antigas das fábricas
- Lembranças de quem trabalhou nelas
- Histórias sobre as festas e os fogos
- Documentos, recortes de jornal, qualquer registro
Mande para o Tá no Arquivo!
Cada memória ajuda a iluminar ainda mais esse capítulo da história de Cordeirópolis.
Fonte Histórica
Este artigo foi desenvolvido com base em relatos orais de moradores antigos de Cordeirópolis, preservados em entrevistas e depoimentos. O texto aqui apresentado é uma adaptação narrativa do blog Tá no Arquivo, mantendo a fidelidade aos fatos históricos relatados pela comunidade.
Gostou dessa história? Compartilhe com amigos e familiares de Cordeirópolis. Alguém certamente vai se lembrar do tempo em que o céu brilhava todas as noites.
Tá No Arquivo – Desenterrando histórias que merecem ser contadas