Tlin, tlin, tlin. O som das caçulinhas batendo umas nas outras no engradado era música para os ouvidos de qualquer criança dos anos 50.
Tarde quente em Cordeirópolis. O sol castiga o chão de terra batida da rua do Comércio( hoje atual rua Toledo Barros). Um menino corre até a venda com algumas moedas na mão. “Seu João, me vê uma groselha bem gelada!” A garrafinha sai da caixa de gelo, respingando água fria. O lacre estala. O primeiro gole é pura felicidade.
Essa cena se repetiu milhares de vezes entre 1952 e 1962, quando Cordeirópolis tinha sua própria fábrica de refrescos. E o mais impressionante? Aquelas garrafinhas viajavam muito mais longe do que qualquer um imaginaria.
O homem por trás das garrafinhas
Miguel Rodrigues de Oliveira não era um grande industrial. Era um homem simples que viu uma oportunidade e decidiu arriscar.
Em 1952, instalou sua pequena fábrica na esquina da rua Toledo Barros com a Sete de Setembro, um endereço que somente os mais velhos chamam de “Rua do Comércio”. As instalações eram modestas, mas o que faltava em tamanho sobrava em dedicação.
Ali, Miguel e sua equipe produziam artesanalmente os refrescos que adoçariam a vida de muitas famílias. Cada garrafa era enchida à mão, lacrada com cuidado e embalada em engradados de madeira.
Não era Coca-Cola. Não era Guaraná Antarctica. Era refresco de Cordeirópolis e isso bastava.

Groselha e Quinado: Os sabores da cidade
Dois sabores dominavam a produção: groselha e quinado.
A groselha era a favorita das crianças, doce, vermelha, refrescante. O quinado tinha gosto mais marcante, meio amargo, e fazia sucesso entre os adultos que acreditavam em suas propriedades “fortificantes”.
As garrafinhas eram chamadas de caçulinhas, pequenas, de vidro grosso, com tampa de metal que precisava ser aberta com abridor. Geladas, então, eram irresistíveis.
Nas festas de aniversário, nos almoços de domingo, nas tardes quentes de verão, lá estavam elas. Cada caçulinha aberta era um evento. Cada gole era saboreado devagar.
De Cordeirópolis para o Brasil
Aqui é onde a história fica surpreendente.
Flávio Rodrigues de Oliveira, filho de Miguel, guarda memórias vívidas daqueles tempos:
“Vendíamos muito bem em toda a região, inclusive até para Goiás e no comecinho de Brasília.”
Pense nisso. Estamos falando de uma cidadezinha do interior paulista, com uma fábrica artesanal, despachando refrescos para Goiás e para Brasília, a capital federal que estava sendo construída!
Como isso acontecia? O Brasil dos anos 50 era um país em transformação. Brasília começou a ser construída em 1956. Milhares de trabalhadores, os candangos, vinham de todos os cantos do país para erguer a nova capital. E precisavam de comida, bebida, mantimentos.
Os refrescos de Cordeirópolis chegavam lá. Em caminhões que enfrentavam estradas de terra, poeira e sol escaldante, as caçulinhas viajavam centenas de quilômetros.
Era o interior paulista levando seu sabor para o coração do Brasil.
A era de ouro dos refrescos artesanais
Para entender o sucesso da fábrica de Miguel Rodrigues, é preciso voltar no tempo.
Nos anos 50, refrigerantes industrializados ainda eram artigo de luxo no Brasil. A Coca-Cola havia chegado em 1942, mas sua distribuição era limitada às grandes cidades. O Guaraná Antarctica existia desde 1921, mas também não chegava a todos os cantos.
No interior, a solução eram as fábricas locais de refrescos. Praticamente toda cidade de médio porte tinha a sua. Eram negócios familiares, artesanais, que atendiam a demanda regional.
Cordeirópolis não era exceção, mas tinha um diferencial: qualidade e alcance.
Enquanto muitas fábricas se limitavam à cidade e vizinhança, os refrescos de Miguel Rodrigues atravessavam estados.
O dia em que as máquinas pararam
Em 1962, dez anos após o início, a fábrica fechou suas portas.
Por quê? As razões são várias:
- Concorrência das grandes marcas que começavam a se expandir pelo interior
- Custos crescentes de produção e transporte
- Dificuldades logísticas – manter qualidade em longas distâncias era cada vez mais difícil
- Mudança nos hábitos de consumo – os refrigerantes industrializados viravam sinônimo de modernidade
Miguel Rodrigues teve que tomar a difícil decisão de encerrar o negócio. As máquinas pararam. As caçulinhas deixaram de ser enchidas. O som do engradado tilintando na porta da venda virou apenas memória.
Mas que memória.
Um sabor que atravessa gerações
Quem provou os refrescos de Cordeirópolis nunca esqueceu.
Não era só o gosto. Era o ritual. Era a garrafa gelada nas mãos num dia quente. Era o lacre estalando. Era dividir com o irmão, com o primo, com o amigo.
Era aquela sensação de que o mundo estava bem quando você tinha uma caçulinha de groselha na mão.
Hoje, mais de 60 anos depois, não existem mais as garrafas. Não existe mais a fábrica. Mas existe a memória viva, forte, doce como groselha.
O legado além do sabor
A fábrica de refrescos foi mais um capítulo na história empreendedora de Cordeirópolis.
Assim como as fábricas de cerâmica e as tecelagens que marcaram época, a indústria de Miguel Rodrigues mostrou que a cidade tinha espírito inovador, capacidade de ir além das suas fronteiras e coragem de ousar.
De uma pequena esquina na Rua do Comércio, Cordeirópolis levou seu nome e seu sabor para Goiás, para Brasília, para o Brasil.
E isso, nenhum fechamento de fábrica consegue apagar.
Você se lembra?
Queremos ouvir suas histórias!
- Sua família comprava os refrescos do seu Miguel?
- Você se lembra do gosto da groselha? E do quinado?
- Alguém na sua casa guardou uma caçulinha de lembrança?
- Você conheceu a fábrica ou trabalhou lá?
- Tem fotos dessa época?
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Você Sabia?
Nos anos 50, ter um refrigerador em casa era luxo. A maioria das famílias guardava as bebidas em caixas de gelo — blocos grandes de gelo que o “homem do gelo” entregava de porta em porta. Por isso, tomar um refresco gelado era um evento especial, não algo do dia a dia.
Brasília começou a ser construída em 1956 e foi inaugurada em 1960. Durante a construção, dezenas de milhares de trabalhadores viviam em condições precárias no canteiro de obras. Produtos que vinham de outras regiões do Brasil eram muito valorizados e os refrescos de Cordeirópolis estavam entre eles.
Fonte Histórica
Este artigo faz parte da série “Retratos do Passado” e foi desenvolvido com base em depoimentos de moradores antigos de Cordeirópolis, incluindo Flávio Rodrigues de Oliveira, filho do proprietário da fábrica. O texto aqui apresentado é uma adaptação narrativa do blog Tá no Arquivo, mantendo a fidelidade aos fatos históricos relatados no ano de 2008 para o Jornal Expresso.
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